Instituições internacionais não conseguem defender a liberdade de imprensa
Por Joel Simon
A UNESCO é o principal órgão da Organização das Nações Unidas dedicado à defesa da liberdade de imprensa. Em 2010, entretanto, organizações de jornalismo e de direitos humanos foram obrigadas a lançar uma campanha internacional para impedir a UNESCO de conferir um prêmio em honra a um dos mais notórios violadores da liberdade de imprensa da África.
ATAQUES À
IMPRENSA EM 2010
Prefácio
Introdução
Análise Internet
Análise Américas
Argentina
Brasil
Colômbia
Cuba
Estados Unidos
Equador
Haiti
Honduras
México
Venezuela
Ataques e fatao
em toda a região
Em 2008, a UNESCO aceitou uma doação de US$ 3 milhões do presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, para financiar um prêmio anual à pesquisa em Ciências da Vida. Há mais de três décadas, Obiang governa com mão de ferro o minúsculo país do oeste africano. Apesar de um boom do petróleo proporcionar à Guiné Equatorial uma das maiores rendas per capita na África, a corrupção e a má administração reduziram o padrão de vida do país a um dos mais baixos no continente. Jornalistas sofrem perseguições sistemáticas, censura e detenção no país. Em 2006, uma pesquisa do CPJ considerou a Guiné Equatorial um dos dez países com maior nível de censura no mundo.
Organizações internacionais de direitos humanos e de liberdade de imprensa ficaram indignadas com a idéia do Prêmio Obiang. O CPJ aliou-se a uma coalizão para lutar contra essa proposta e participou da oposição que contou com organizações internacionais de defesa da liberdade de imprensa e eminentes jornalistas, inclusive vencedores do Prêmio Guillermo Cano World Press Freedom, da própria UNESCO. Os planos para a concessão do Prêmio Obiang foram finalmente derrotados em outubro, quando o conselho executivo da UNESCO declarou que não levaria o prêmio adiante sem o consenso dos seus membros – consenso este que não será atingido devido à forte oposição manifestada por vários deles.
Foi uma vitória, mas a batalha nunca deveria ter sido travada. O fato é que muitas organizações governamentais internacionais deixam sistematicamente de cumprir a missão para a qual foram criadas: defender a liberdade de imprensa. Tal como com a controvérsia do caso Obiang, grupos de defesa dos direitos humanos e da liberdade de imprensa estão gastando tempo, recursos e energia para garantir que essas instituições não se desviem do seu mandato.
Veja o exemplo da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, a OSCE. Contando atualmente com 56 membros, a organização intergovernamental foi criada durante a Guerra Fria para controlar as condições de segurança na Europa e é encarregada da defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. Ainda assim, o Cazaquistão, um dos maiores violadores da liberdade de imprensa na região, foi eleito presidente da organização em 2007. O início do mandato do país foi adiado em um ano para que Astana pudesse implementar as prometidas reformas relativas à liberdade de imprensa, incluindo a alteração de leis repressivas. O Cazaquistão não só deixou de cumprir o que prometeu como introduziu novas medidas restritivas, o que não constituiu um obstáculo para que o país assumisse a liderança da OSCE em 2010.
Um relatório do CPJ publicado em setembro apontou que os ataques a jornalistas cazaques continuaram antes e durante a ocupação da presidência da OSCE pelo país. Um jornalista e um destacado ativista dos direitos humanos foram presos sob condições terríveis. Dois jornais que faziam críticas ao governo foram fechados. Foi aprovada uma lei de uso da Internet extremamente restritiva, o que praticamente impede o desenvolvimento de uma blogosfera crítica. De acordo com uma imprecisa e ampla lei de privacidade, promulgada assim que o Cazaquistão assumiu a liderança da OSCE, jornalistas podem ser presos por até cinco anos por informar sobre “a vida de uma pessoa”. Segundo o relatório do CPJ, “ao desrespeitar os direitos humanos e a liberdade de imprensa internamente, o Cazaquistão comprometeu a reputação internacional da OSCE como guardiã desses direitos, minou a relevância e eficácia da organização e, portanto, desvalorizou os direitos humanos em todos os Estados-membros da OSCE”.
Em outubro, uma delegação do CPJ viajou a Viena, sede da OSCE, para pedir às autoridades da organização que abordassem a péssima situação da liberdade de imprensa no Cazaquistão numa reunião de cúpula marcada para o final do ano. Ao apresentar suas conclusões, o CPJ observou que durante o Compromisso de Moscou de 1991 os países da OSCE concordaram que os direitos humanos e as liberdades fundamentais são de interesse comum, e não meramente um assunto interno de um Estado isolado. Na ocasião da realização da Cúpula, entretanto, a liberdade de imprensa e os direitos humanos não foram especificamente abordados.
O CPJ e outras organizações de liberdade de imprensa têm procurado conquistar o apoio do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, na luta global contra a impunidade em assassinatos de jornalistas. Em abril de 2007, uma delegação do CPJ se reuniu com Ban, que expressou admiração pelo trabalho dos jornalistas e prometeu apoiar os esforços da ONU que visam dar suporte ao trabalho da categoria. Durante os anos seguintes, Ban fez uma série de declarações de apoio, porém sem muita firmeza. O secretário-geral desperdiçou uma boa oportunidade de defender a liberdade de imprensa ao deixar de parabenizar o ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, ativista dos direitos humanos e jornalista que se encontra preso. Como o governo chinês lançou uma campanha global contra a concessão do prêmio, Ban, aparentemente, sucumbiu à pressão e deu um exemplo decepcionante para toda a ONU.
Organizações intergovernamentais geralmente consistem em uma estrutura política de Estados-membros e uma estrutura jurídica que julga a aplicabilidade dos tratados internacionais que protegem os direitos humanos e a liberdade de imprensa. Essas estruturas jurídicas são compostas, por sua vez, por relatores especiais para a liberdade de expressão, cujo papel é defender e garantir a manutenção dos mandados de liberdade de imprensa no seio das instituições.
Em muitos casos, esses relatores especiais têm se saído muito bem. Frank LaRue, relator especial da ONU, e Catalina Botero, relatora especial para a liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), têm criticado e chamado a atenção para os abusos contra a liberdade de imprensa. Uma missão conjunta de LaRue e Botero no México, em agosto, despertou amplamente a atenção para a desenfreada violência contra a imprensa no país.
Alguns organismos jurídicos regionais também mostram resultados positivos. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por exemplo, emitiu uma série de decisões importantes relacionadas a casos de liberdade de imprensa na Rússia e no Azerbaijão. Num julgamento importante em 2010, relativo ao caso Sanoma Uitgevers B.V. versus Países Baixos, o tribunal determinou limites rígidos à competência dos governos de revistar redações de jornais. O CPJ teve participação como amicus curiae no processo.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ordenou que os Estados-membros dessem proteção direta aos jornalistas em risco, e ofereceu mediação eficaz em caso de violação dos direitos dos jornalistas. Ao longo dos anos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu decisões-chave a favor da liberdade de imprensa, incluindo um veredicto histórico que derrubou uma condenação criminal por difamação na Costa Rica.
Estes sistemas, no entanto, fracassam em nível político. A OEA, que foi paralisada por batalhas ideológicas na América Latina, raramente fala sobre as violações da liberdade de imprensa. Mesmo com a liberdade de imprensa praticamente desaparecendo devido à legislação na Venezuela, o secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, não conseguiu confrontar o governo do presidente Hugo Chávez Frías. E quando o Azerbaijão deixou de cumprir uma ordem do Tribunal Europeu para libertar Eynulla Fatullayev – editor ganhador do Prêmio Internacional à Liberdade de Imprensa do CPJ em 2009, preso sob acusações forjadas – o Conselho do Comitê Europeu de Ministros, órgão encarregado de assegurar o cumprimento das decisões judiciais, emitiu apenas uma leve advertência a Baku. Não adotou nenhuma resolução para sanções contra o Azerbaijão pelo descumprimento da ordem, apesar de ter mandato para tanto. O Azerbaijão menosprezou a repreensão e continuou mantendo Fatullayev preso.
Enquanto isso, jornalistas em risco na Ásia, Oriente Médio e África não contam com nenhum apoio da Associação de Nações do Sudeste Asiático, da Liga Árabe ou da União Africana (UA). A UA tem sede na capital de um dos maiores violadores da liberdade de imprensa na África, a Etiópia, e o órgão da organização de direitos humanos tem sua sede na Gâmbia, país onde os jornalistas são presos, assassinados e “desaparecem”. Apesar da existência de um relator especial para a liberdade de expressão, a UA tem ficado em silêncio diante de grandes violações da liberdade de imprensa naqueles países.
É óbvio que organizações intergovernamentais são compostas de governos, portanto a resistência de poderosos protagonistas internacionais representa um problema. As tentativas de intimidação por parte da China para suprimir a participação na cerimônia do Nobel em Oslo mostra a sua disposição de usar o poder para limitar a influência de organizações internacionais e governos nacionais que se manifestem em favor da liberdade de imprensa. China e Cuba reagiram de forma agressiva quando a UNESCO homenageou jornalistas de seus países com o Prêmio Guillermo Cano.
A União Européia, embora defendendo o apoio à liberdade de imprensa, muitas vezes reluta em assumir um papel de confronto. No debate sobre o Prêmio Obiang no âmbito da UNESCO, por exemplo, a UE pareceu modular a sua oposição para não contrariar os países africanos que apoiaram o prêmio. Embora a UE tenha tomado medidas para isolar Cuba após a repressão aos dissidentes e à imprensa em 2003, foi a Espanha, trabalhando com a Igreja Católica, que negociou a libertação dos detidos. Dezessete jornalistas cubanos presos foram libertados em 2010, embora quatro permanecessem encarcerados até o final do ano.
A influência dos Estados Unidos, que tradicionalmente defendiam a liberdade de imprensa no âmbito das organizações internacionais, diminuiu. Existem muitas razões para tal, desde a reduzida influência da mídia dos EUA na arena global ao persistente ressentimento em muitas partes do mundo pelos abusos contra os direitos humanos cometidos pelos EUA, incluindo o uso de tortura. A reação dos funcionários do governo dos EUA à divulgação de documentos confidenciais pela organização anti-sigilo WikiLeaks complicou ainda mais a situação.
Em um exemplo marcante ocorrido nos bastidores da cúpula da OSCE, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Rodham Clinton, reuniu-se com Raushan Yesergepova, esposa de um editor do Cazaquistão condenado por divulgar segredos de Estado. Ele havia divulgado memorandos do governo mostrando que o serviço de segurança estava influenciando indevidamente uma questão fiscal local. No entanto, o apoio dos EUA foi enfraquecido. Quando um repórter na reunião de cúpula perguntou sobre a divulgação pelo WikiLeaks de telegramas secretos do Departamento de Estado, Hillary qualificou o caso como uma violação ilegal das regras de segurança. Mais tarde, segundo nos contou Yesergepova, um oficial superior do Cazaquistão repreendeu a esposa do editor: “Não ouviu o que Clinton acaba de dizer? Segredos de Estado não devem ser revelados nunca. É perigoso e inadequado”.
A triste realidade atual é que, enquanto a justiça internacional garante o direito à livre expressão, os jornalistas contam apenas com algumas poucas instituições internacionais para defender esse direito. Enquanto há organizações não-governamentais preenchendo esse vazio, desafiando os violadores da liberdade de imprensa e promovendo a conscientização internacional, esses grupos devotam cada vez mais tempo monitorando o comportamento das mesmas organizações governamentais internacionais que deveriam ser aliadas na luta pela liberdade de imprensa.
Não se pode aceitar que toda responsabilidade de proteger a liberdade de imprensa seja empurrada para os relatores especiais, muitas vezes politicamente isolados e carentes de recursos. Os líderes políticos de todas as instituições internacionais – das Nações Unidas à União Africana, da OEA ao Conselho da Europa e à OSCE – precisam se manifestar energicamente pela liberdade de imprensa e pressionar para que os Estados-membros interessados em impedir o cumprimento desta tarefa recuem. Precisam também trabalhar com determinação para fazer cumprir decisões judiciais. Jornalistas que trabalham em condições perigosas sentem-se isolados e abandonados pelas próprias instituições internacionais criadas para proteger os seus direitos. Como este livro documenta, 145 jornalistas foram presos e 44 foram assassinados em todo o mundo em 2010. Cada uma dessas violações representa uma oportunidade para as instituições internacionais exigirem justiça.
Joel Simon é o diretor-executivo do Comitê para a Proteção dos Jornalistas.