Capítulo 2: Comparando o Progresso à Realidade Contumaz
Em novembro de 2013, a Assembleia Geral das Nações Unidas colocou a questão da impunidade no centro da programação global.
A Resolução sobre a Segurança de Jornalistas e a Questão da Impunidade, aprovada por consenso, descreve a ausência de justiça para as vítimas como “uma das principais questões para o fortalecimento da proteção de jornalistas”. Pede aos Estados que “garantam a responsabilização através de investigações imparciais, rápidas e eficazes em todos os casos de violência contra jornalistas e trabalhadores da mídia sob sua jurisdição”. Os governos estão, além disso, encarregados de “levar os perpetradores de tais crimes ao tribunal e garantir às vítimas acesso às devidas a reparações.” A resolução proclama 2 de novembro como o Dia Internacional para Acabar com a Impunidade em Crimes contra Jornalistas.
Para o CPJ e outros grupos que fizeram campanha contra a impunidade, a resolução representou um novo nível de reconhecimento internacional. “A votação demonstrou que esses governos reconhecem que existe um problema, e que a segurança dos jornalistas para fazer seu trabalho de interesse público precisa ser protegida”, escreveu Annie Game, diretora-executiva do Intercâmbio Internacional de Liberdade de Expressão, uma rede global de grupos de liberdade de expressão. A organização observa desde 2011 um Dia Mundial pelo Fim da Impunidade.
O Caminho para a Justiça
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Em junho de 2012, na 20a sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a impunidade quanto às agressões direcionadas a jornalistas foi destacada como um enorme flagelo para os direitos humanos por Christof Heyns, relator especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, e pelo relator para a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, Frank LaRue. Mais tarde nesse ano, os Estados membros no Conselho de Direitos Humanos aprovaram a sua própria resolução sobre a segurança de jornalistas, apelando aos governos que retifiquem a impunidade.
Em 2012, a ONU também aprovou o Plano de Ação para a Segurança dos Jornalistas e a Questão da Impunidade, liderado pela UNESCO, uma tentativa de induzir as partes interessadas, governos, agências da ONU, órgãos regionais, sociedade civil e grupos da mídia, a promover a proteção de jornalistas e a justiça para os assassinatos de jornalistas. O Conselho de Segurança da ONU realizou dois debates sobre o tema em 2013. Outros organismos internacionais também estão se posicionando sobre esta questão. Em abril deste ano, o Conselho do Comitê de Ministros da Europa adotou uma declaração sobre a segurança de jornalistas, sugerindo que “erradicar a impunidade é uma obrigação fundamental dos governos”.
Este endosso internacional é um passo importante para tratar de uma questão que o CPJ anteriormente viu descartada pelos governos como um problema excessivo ou inconsequente. Os Estados membros por trás dessas organizações, ao adotarem estes documentos, se comprometeram publicamente a investigar a fundo e reagir quando um jornalista é agredido, ameaçado, ou morto.
Fora dos corredores políticos, no entanto, o progresso deixa muito a desejar. A realidade cotidiana é que os índices de impunidade têm aumentado de forma constante ao longo da última década, na maioria dos países que o CPJ identificou como lugares onde os jornalistas são assassinados e os homicidas amiúde ficam livres. Em nove desses países, Bangladesh, Brasil, Colômbia, Índia, Iraque, Paquistão, Filipinas, Rússia, e Somália, houve novas mortes em 2013, um lembrete alarmante de que, onde há impunidade, os jornalistas continuam sendo alvos, ano após ano. Em meio a esses números desanimadores, há um sinal concreto de alento: tem crescido as condenações de assassinos de jornalistas. O número de condenações em 2013 foi quase o dobro do recorde anterior remontando a 2004. Embora o caminho para a justiça exija muitos mais condenações, a nova tendência pode ser uma indicação de que a pressão interna e internacional está começando a provocar uma mudança.
Quando o CPJ desenvolveu sua campanha contra a impunidade, em 2007, uma preocupação essencial era como medir e definir o progresso. Portanto, o CPJ desenvolveu o Índice Global de Impunidade, que calcula os assassinatos para os quais não houve condenação de suspeitos, como percentagem da população de um país. Com o objetivo de monitorar os países que apresentam padrões de violência e impunidade, cada índice anual identifica assassinatos que ocorreram nos 10 anos anteriores e inclui apenas os países com cinco ou mais casos não solucionados durante esse período.
O primeiro Índice Global de Impunidade foi lançado em 2008; o CPJ publicou o seu sétimo índice em 2014. As mudanças ao longo do tempo não são dramáticas, mas são reveladoras. Dezesseis países ocuparam lugar no índice ao longo deste período. Dez deles têm mantido o lugar a cada ano, o que significa que mantiveram um registro de pelo menos cinco assassinatos não resolvidos nos últimos 10 anos, uma indicação de que a impunidade está bem enraizada nesses países. Os dados desses 10 países mostram que a impunidade ali aumentou, em média, 56 por cento entre 2008 e 2014.
A deterioração mais dramática ocorreu na Somália, que viu a sua classificação de impunidade mais do que quadruplicar desde 2008. Yusuf Ahmed Abukar foi a última vítima, e o 27º jornalista a ser assassinado na Somália na última década com impunidade total, quando seus assassinos detonaram por controle remoto uma bomba em seu carro. A classificação do Paquistão mais que dobrou nesse período. Apesar de uma grande condenação, no caso de Wali Khan Babar no início de 2014, os jornalistas de lá sofrem uma série de ameaças, não só de militantes e caudilhos, mas também de oficiais militares, de segurança e do governo, segundo a pesquisa do CPJ.
O México quase duplicou a sua classificação de impunidade nos últimos sete anos, quando as autoridades deixaram de reprimir a violência implacável contra a imprensa lá. As Filipinas, onde os assassinatos cresceram subitamente após o Massacre de Maguindanao em 2009, veio em seguida: sua classificação de 2014 aumentou mais de 80 por cento desde 2008. O Brasil, que entrou para o índice em 2009, viu a sua classificação de impunidade crescer mais de 70 por cento desde então. Índia, Iraque e Sri Lanka subiram ligeiramente. Na Rússia, condenações esparsas foram contrabalançadas por novas mortes; o país hoje tem a mesma classificação que tinha há sete anos.
A Colômbia registrou a mudança mais positiva. Sua classificação de 2014 caiu para menos de um terço do que era em 2008, uma melhoria que tem menos a ver com a justiça, apenas duas condenações ocorreram lá nos últimos 10 anos, do que com um declínio geral das agressões feitas a jornalistas. Três países, Serra Leoa, Bangladesh e Nepal, saíram do índice por completo, também devido principalmente a um refluxo da violência contra a imprensa ligado a mudanças políticas mais amplas.
A recente ascensão das condenações deve ser vista num contexto sóbrio. De 2004 até 2013, houve condenações em apenas 41 casos em que o CPJ verificou que o assassinato do jornalista era relacionado ao trabalho; um total de 370 assassinatos ocorreu no mesmo período. Mas a curva da tendência é encorajadora, com 26 dessas condenações acontecendo nos últimos cinco anos, contra apenas 15 no período anterior de cinco anos. Só no ano passado, houve um relativo crescimento repentino, com oito condenações em todo o mundo, inclusive em países com registros de longa data de alta impunidade, como Rússia, Filipinas e Brasil. Em 2004, houve apenas uma.
Oito atos de justiça durante um ano em que 31 jornalistas foram assassinados por realizarem o seu trabalho não é um número para se comemorar, mas é um grande ponto de partida em relação ao terrível registro dos anos anteriores.
Com a sua recente melhoria no Índice de Impunidade do CPJ, a Colômbia encarna a esperança para o futuro, mas também a realidade do longo caminho a percorrer para chegar à justiça plena.
A Colômbia caiu para mais da metade em sua classificação de impunidade nos últimos sete anos, e mudou-se do quinto para o oitavo lugar no ranking mundial de países com os piores registros de processar assassinos de jornalistas.
O programa colombiano de proteção de jornalistas, que providencia destacamentos de segurança ou ajuda a remanejar jornalistas ameaçados, muitas vezes leva o crédito pela melhoria do registro da violência contra a imprensa no país, que já foi um dos mais altos do mundo.
Mas, em grande medida, a melhoria parece ser subproduto do arrefecimento de 50 anos de conflito armado no país. O conflito colocou dois grupos rebeldes marxistas contra o governo; até recentemente, essa mistura também incluía os paramilitares de direita, que muitas vezes colaboravam com o exército. Todos estes quatro protagonistas armados abatiam jornalistas.
Mas a violência diminuiu, e com ela, as mortes de jornalistas. Grupos armados ilegais, políticos corruptos, e outros continuam a ameaçar jornalistas, mas hoje a intimidação leva mais à autocensura, em vez de ao homicídio, de acordo com Pedro Vaca, diretor-executivo da Fundação pela Liberdade de Imprensa, FLIP, com sede em Bogotá. Ele descreveu esta melhoria incrementada, como de “muito ruim” para “ruim”.
O governo está reorganizando a Procuradoria-geral para formar uma equipe especial para examinar os crimes contra jornalistas. Até agora, no entanto, não houve melhoria na presteza ou na eficiência para solucionar esses casos, disse Vaca.
Apesar de o sistema legal tradicional da Colômbia continuar de uma lentidão exasperante, alguma clareza, se não uma conclusão, pode ser conseguida através da chamada justiça transicional. O termo refere-se a medidas judiciais, bem como alternativas, para corrigir os abusos generalizados dos direitos humanos nas sociedades em transição da guerra para a paz.
Por exemplo, de acordo com uma lei de 2005, que prometia penas leves em troca de desarmamento e dizer a verdade, vários líderes paramilitares explicaram o seu papel nos assassinatos de dois jornalistas no início da década de 2000, no norte do estado de Arauca. Embora ainda não tenha havido condenações nesses casos, os parentes sobreviventes, pelo menos, sabem um pouco mais sobre o que aconteceu.
Enquanto isso, de acordo com a Lei de Restituição de Terras e Vítimas, de 2011, o governo está indenizando milhares de vítimas de violações dos direitos humanos, entre elas, jornalistas que tinham direito à proteção estatal contra tal violência.
Além disso, o governo fez uma série de gestos simbólicos para começar a reparar os enormes estragos no jornalismo colombiano provocados pelo conflito armado. Em fevereiro, a Unidade de Vítimas, do governo realizou uma cerimônia especial em Bogotá em honra de jornalistas colombianos assassinados, que contou com a presença do presidente Juan Manuel Santos. “Não é a mesma coisa que um tribunal botar os assassinos na prisão”, disse Vaca, “mas ela tem um efeito reconfortante”.
No entanto, na busca da plena justiça para os jornalistas assassinados, a Colômbia só deu alguns passos vacilantes. Um exemplo claro é o caso de Luis Eduardo Gómez.
Jornalista freelance, Gómez também era testemunha do governo em uma investigação sobre as ligações entre políticos colombianos e os grupos paramilitares, um relacionamento sobre o qual muitas vezes escreveu. Em 30 de junho de 2011, um agressor não identificado alvejou Gómez, de 70 anos, em sua cidade natal de Arboletes no norte da Colômbia, e fugiu em uma motocicleta.
Por algum tempo, o governo colombiano parecia estar cuidando do caso. Concordou em indenizar a viúva de Gómez. No ano passado, o chefe de polícia nacional da Colômbia, Rodolfo Palomino, anunciou a captura de Hermes Rebolledo, ex-líder paramilitar que Palomino vinculou à morte de Gómez.
Mais tarde, porém, a Procuradoria-geral disse que, embora Rebolledo estivesse sendo investigado por tráfico de drogas e outros crimes, ele não havia sido vinculado ao assassinato do jornalista. Três anos depois de Gómez ser morto, o caso continua sem solução. O caso está na lista do CPJ de assassinatos não confirmados de jornalistas, o que significa que o CPJ ainda não determinou se o motivo do crime foi o jornalismo.
A justiça quase sempre permanece indefinida ou incompleta quando jornalistas são assassinados na Colômbia. Desde 1977, a FLIP documentou 142 assassinatos de jornalistas relacionados com o trabalho. Desse total, quase a metade dos casos foi encerrada porque excedia os 20 anos de um estatuto de limitações. A procuradoria geral não conseguiu dar informações sobre 30 casos, porque os arquivos aparentemente se perderam ou foram extraviados. Em suma, houve apenas 19 condenações.
O CPJ, que começou a rastrear os assassinatos de jornalistas em 1992 e usa várias metodologias, documentou 45 jornalistas mortos diretamente por seu trabalho na Colômbia, e mais 33 assassinatos em que o motivo não está claro. Em casos de homicídio onde o CPJ confirmou ser o jornalismo o motivo, reina a impunidade em 88 por cento, com a maioria do restante obtendo justiça apenas parcial.
Mesmo quando os assassinos são capturados e condenados, os mandantes que têm como alvo os repórteres quase sempre continuam em liberdade, segundo mostra a pesquisa do CPJ. As investigações geralmente desmoronam devido a problemas como promotores sobrecarregados, falta de compartilhamento de informações, manuseio incorreto de provas, e de improbidade por parte de oficiais judiciais.
Alejandro Ramelli, promotor da Procuradoria-geral em Bogotá e especialista em crimes contra jornalistas, apontou dois fatores para a impunidade generalizada. Em entrevista de 2013, dada ao CPJ, ele indicou problemas estruturais no sistema judicial, e, por parte dos promotores, um foco persistente no último elo da cadeia – aquele diretamente responsável pela morte dos jornalistas – em vez de focalizar as organizações criminosas e políticos corruptos que estão, muitas vezes, por trás dos assassinatos.
A matança continua. Em 2013, um jornalista e um auxiliar da mídia foram assassinados na Colômbia em represália direta por seu trabalho. Outro jornalista de uma revista proeminente do país escapou por pouco a uma tentativa de assassinato, enquanto jornalistas por todo o país foram repetidamente ameaçados e, em alguns casos, obrigados a fugir de suas casas e do país. Falando na UNESCO no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, em 2013, a jornalista Claudia Julieta Duque, ela mesma vítima de uma longa campanha de assédio e intimidação que a forçou a um exílio temporário em várias ocasiões, disse à plateia, “Proteção é bom, mas as pessoas por trás da impunidade precisam sofrer as consequências”.