Jornalistas mexicanos se reúnem em torno de fotos de colegas assassinados enquanto protestam contra os recentes homicídios dos jornalistas Margarito Martinez e Lourdes Maldonado, em Veracruz, México, em 25 de janeiro de 2022. (Reuters/Yahir Ceballos)

Assassinando com impunidade: A grande maioria dos assassinos de jornalistas ficam em liberdade

Por Jennifer Dunham / Vice-diretora Editorial do CPJ
Ninguém foi responsabilizado em quase 80% dos assassinatos de jornalistas durante os últimos 10 anos, apurou o Índice Global de Impunidade 2022 do CPJ, e os governos mostram pouco interesse em lidar com o assunto.

Publicado em 1º de novembro de 2022


Índice Global de Impunidade | Metodologia


A grande maioria dos assassinos de jornalistas continua escapando das consequências, de acordo com o Índice Global de Impunidade do CPJ de 2022. Em quase 80% dos 263 casos de jornalistas assassinados em retaliação ao seu trabalho globalmente durante a última década, os perpetradores não sofreram nenhuma punição. 

A Somália continua sendo o pior infrator no índice pelo oitavo ano consecutivo. Síria, Sudão do Sul, Afeganistão e Iraque, respectivamente, completam os cinco principais países do índice, que cobre o período de 1º de setembro de 2012 a 31 de agosto de 2022. Cada um desses países já esteve incluído diversas vezes no índice do CPJ, com seu histórico de conflitos, instabilidade política e deficiente Estado de Direito, ressaltando a natureza arraigada da impunidade e tornando improvável que as autoridades venham a dedicar recursos à busca de justiça para os jornalistas.

Myanmar faz sua primeira aparição no índice em 2022, em oitavo lugar no ranking, indicando mais um marco sombrio após se juntar ao ranking dos piores carcereiros de jornalistas do mundo no censo carcerário do CPJ em 1º de dezembro de 2021. Após o golpe que suspendeu a democracia em fevereiro de 2021, a junta militar de Myanmar prendeu dezenas de jornalistas e usou amplas leis anti-Estado e contra notícias falsas para suprimir o jornalismo independente. Também assassinou pelo menos três jornalistas, incluindo dois – Aye Kyaw e Soe Naing – que fotografaram protestos contra o regime e mais tarde foram presos e mortos sob custódia.

No entanto, mesmo em países menos voláteis com governos eleitos democraticamente, as autoridades mostram pouca vontade política para processar os assassinos de jornalistas ou coibir a violência contra a imprensa. Ao contrário, líderes como o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador e o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, lançam regularmente ataques verbais contra os meios de comunicação mesmo quando os repórteres sofrem ameaças constantes por suas reportagens vitais sobre crime, corrupção e questões ambientais.

O México é um dos casos mais notórios. Lá, o CPJ documentou 28 assassinatos de jornalistas não solucionados nos últimos 10 anos- o maior de quaisquer países do índice e o mais perigoso para os jornalistas do hemisfério ocidental. Está em sexto lugar no índice do CPJ, em parte porque as classificações são calculadas com base no tamanho da população do país. Além disso, a complexa teia de violência generalizada no México muitas vezes torna difícil dizer com certeza se o assassinato de um jornalista está relacionado ao trabalho, o que significa que mortes com um motivo indeterminado não são consideradas nos cálculos para a colocação de um país no índice da CPJ.

Pelo menos 13 jornalistas foram mortos no México nos primeiros nove meses de 2022, o número mais alto já documentado pela CPJ naquele país em um único ano. Pelo menos três desses jornalistas foram assassinados em retaliação direta por sua reportagem sobre crime e corrupção política, e tinham recebido ameaças antes de suas mortes. O CPJ está investigando o motivo dos outros 10 assassinatos para determinar se eles estavam relacionados ao trabalho.

No início deste ano, as autoridades mexicanas mostraram o alto número de suspeitos presos em assassinatos de jornalistas, com o porta-voz presidencial Jesús Ramírez Cuevas destacando, em março, que 16 pessoas haviam sido detidas em conexão com os assassinatos de seis jornalistas até então em 2022. Após recentes condenações-chave no assassinato de Javier Valdez Cárdenas em 2017, as autoridades também intensificaram seus esforços para extraditar da custódia dos Estados Unidos o suposto mentor, Dámaso López Serrano, um ex-membro de alto nível de um grupo do crime organizado no estado de Sinaloa, no norte do México. No geral, no entanto, a maior taxa de prisão ainda não levou a condenações. Além disso, alguns dos detidos – como os suspeitos do assassinato do jornalista Jacinto Romero Flores em 2021 – foram libertados desde então por falta de provas.

Uma funcionária da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em pé ao lado de imagens do indigenista Bruno Pereira, à direita, e do jornalista britânico freelancer Dom Phillips, durante uma vigília em Brasília, Brasil, em 13 de junho de 2022. Pereira e Phillips foram assassinados na Amazônia brasileira no início de junho. (AP Photo/Eraldo Peres)

No Brasil – que ocupa a nona posição no índice – vários acontecimentos em 2022 ressaltaram os riscos persistentes que os repórteres correm no país. Em junho, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados na Amazônia por pessoas que a polícia suspeita terem vínculos com a pesca ilegal na região. Seus assassinatos, de muita visibilidade, evidenciaram os perigos enfrentados por jornalistas que cobrem a Amazônia e temas ambientais em geral. Anteriormente, em fevereiro, o assassinato do jornalista comunitário Givanildo Oliveira por supostos membros da organização criminosa conhecida como Comando Vermelho levantou preocupações sobre os riscos crescentes enfrentados pelos repórteres nas favelas e comunidades marginalizadas do Brasil.

Enquanto isso, a família do jornalista esportivo brasileiro Valério Luiz de Oliveira, que foi assassinado em 2012 como retaliação por suas reportagens sobre um destacado clube de futebol, enfrentou outro revés em sua busca por justiça, pois as datas programadas para o julgamento de seus supostos assassinos foram adiadas repetidamente em 2022. Seu filho, o advogado Valério Luiz de Oliveira Filho, falou ao CPJ sobre sua luta de uma década para garantir que os assassinos de seu pai sejam levados à Justiça, o que ele descreveu como “um pesadelo que não acaba”.

Nas Filipinas – que ocupa o sétimo lugar no índice – a eleição do Presidente Ferdinand Marcos Jr. trouxe esperança de uma mudança na campanha de intimidação e assédio à imprensa do Presidente Rodrigo Duterte. Entretanto, os assassinatos de dois comentaristas de rádio – Percival Mabasa, um veemente crítico de Duterte e Marcos Jr., e Renato Blanco, que noticiava sobre política local e corrupção – desde que Marcos Jr. tomou posse no final de junho, suscitou receios de que a cultura de violência e impunidade vai perdurar.

Familiares lamentam o assassinato do jornalista filipino Percival Mabasa em Las Pinas, subúrbio de Manila, em 4 de outubro de 2022. (AFP/Jam Sta Rosa)

O Paquistão e a Índia foram classificados em 10º e 11º lugar no índice, respectivamente. Ambos apareceram no índice todos os anos desde que o CPJ começou a compilá-lo em 2008, demonstrando a natureza arraigada da impunidade e da violência contra a imprensa nesses países. 

Durante o atual período de 10 anos do índice, de 1º de setembro de 2012 a 31 de agosto de 2022, o CPJ constatou que 263 jornalistas foram assassinados em retaliação por seu trabalho em todo o mundo. Em 206 desses casos, ou 78%, o CPJ registrou total impunidade, o que significa que ninguém foi condenado em conexão com o crime. No período do índice anterior (1º de setembro de 2011 a 31 de agosto de 2021), o CPJ verificou que 81% dos assassinatos de jornalistas não foram solucionados.

Esta edição do índice se sobrepõe ao mesmo período do Plano de Ação das Nações Unidas sobre a Segurança de Jornalistas e a Questão da Impunidade, um mecanismo lançado em 2012 para desenvolver programas para proteger jornalistas e combater a impunidade em casos de violência contra a imprensa. As medidas do plano incluem o estabelecimento de um mecanismo coordenado entre agências para tratar de questões relacionadas à segurança de jornalistas, bem como ajudar os países a desenvolver legislação e mecanismos favoráveis à liberdade de expressão e informação, e apoiar seus esforços para implementar as regras e princípios internacionais existentes. Sua implementação começou no início de 2013, mas o índice mostra que o desafio da impunidade continua a ser avassalador.

O CPJ e organizações parceiras uniram forças em várias iniciativas recentes para combater a impunidade em todo o mundo. Uma delas, o projeto “A Safer World For The Truth” [“Um mundo mais seguro para a verdade”], investiga casos antigos de jornalistas assassinados, descobrindo novas informações e defendendo a reabertura de processos criminais nos países  No início deste ano, no Tribunal Popular do projeto em Haia, testemunhas prestaram depoimento sobre o assassinato do jornalista do Sri Lanka Lasantha Wickrematunge, em 2009, e apresentaram uma abundância de provas que apontam para a culpabilidade do homicídio pelo Ministério da Defesa – liderado na época por Gotabaya Rajapaksa, que renunciou ao cargo de presidente do país em julho.

Este ano, a Rússia e Bangladesh estão ausentes pela primeira vez desde que o CPJ iniciou o índice em 2008, porque esses países tiveram respectivamente três e quatro assassinatos não resolvidos no período do índice, abaixo do corte de cinco exigidos para inclusão no relatório. Mas isso não significa que a liberdade de imprensa ou o ambiente de segurança dos jornalistas tenha melhorado nesses países. Bangladesh continua a prender jornalistas sob a Lei de Segurança Digital, e um – Mushtaq Ahmed – morreu na prisão sob circunstâncias pouco claras em 2021, depois de supostamente sofrer abusos físicos sob custódia policial. O coacusado, cartunista Kabir Kishore, disse ao CPJ que ele foi torturado sob custódia.

A Rússia está há muito tempo entre os piores países do mundo em homicídios de jornalistas, com repórteres que cobrem setores como corrupção oficial e violações dos direitos humanos rotineiramente visados por seu trabalho. Desde que Vladimir Putin assumiu o poder no final de 1999, pelo menos 25 jornalistas foram assassinados em retaliação direta por seu trabalho. Entretanto, nos últimos anos, os homicídios seletivos de jornalistas têm diminuído à medida que o espaço para reportagens independentes tem diminuído, e foi quase completamente fechado desde a invasão russa da Ucrânia em fevereiro, com a maior parte dos meios de comunicação restantes fechados sob pressão legal e regulatória e milhares de jornalistas fugindo do país em meio a uma repressão que tem sido desastrosa para a imprensa na Rússia.

A Novaya Gazeta já foi um dos principais veículos investigativos na Rússia, e pelo menos seis de seus jornalistas e colaboradores foram mortos em conexão com suas corajosas reportagens desde 2000. No entanto, em 2022, o meio de comunicação, como centenas de outros, não pode mais atuar de forma significativa na Rússia devido às complexas ameaças mencionadas acima. Como disse em setembro o Prêmio Nobel e editor-chefe da Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, “Na Rússia, o genocídio da mídia chegou à sua conclusão. Os cidadãos russos estão sozinhos diante da propaganda do governo”.


Índice Global de Impunidade

Index
rank
CountryUnsolved
murders
Population
(in millions)*
Years
on index
1Somalia1916.415
2Syria1618.39
3South Sudan511.48
4Afghanistan1739.814
5Iraq1741.215
6Mexico28130.315
7Philippines1411115
8Myanmar554.81
9Brazil1321413
10Pakistan9225.215
11India201393.415
*Population data from the World Bank’s 2021 World Development Indicators, viewed in September 2022, was used in calculating each country’s rating.

Metodologia

O Índice Global de Impunidade do CPJ calcula o número de assassinatos de jornalistas não resolvidos como uma porcentagem da população de cada país. Para este índice, o CPJ examinou os homicídios de jornalistas ocorridos entre 1º de setembro de 2012 e 31 de agosto de 2022, e ainda não solucionados. Somente as nações com cinco ou mais casos não resolvidos estão incluídas no índice. O CPJ define assassinato como um homicídio deliberado de um jornalista específico, em retaliação ao trabalho da vítima. Este índice não inclui casos de jornalistas mortos em combate ou em missões perigosas, como a cobertura de protestos que se tornam violentos. Os casos são considerados não resolvidos quando nenhuma condenação foi obtida, mesmo que os suspeitos tenham sido identificados e estejam sob custódia. Os casos em que alguns, mas não todos os suspeitos, foram condenados são classificados como impunidade parcial. Os casos em que os suspeitos foram mortos durante a apreensão também são classificados como impunidade parcial. O índice só relaciona assassinatos que foram executados com total impunidade. Não inclui aqueles para os quais foi feita justiça parcial. Os dados da população dos Indicadores de Desenvolvimento Mundial 2021 do Banco Mundial, vistos em setembro de 2022, foram utilizados no cálculo da classificação de cada país.

Jennifer Dunham é a vice-diretora editorial do CPJ. Antes de ingressar no CPJ, ela foi diretora de pesquisa para dos relatório Freedom in the World e Freedom of the Press. da Freedom House.