Por Katherine Jacobsen
A pandemia do COVID-19 desorientou as autoridades de saúde pública, levou a economia global a entrar em choque e mergulhou em crise os governos em toda parte. Ela também reformulou a maneira como os jornalistas trabalham, principalmente porque autoridades em muitos países citaram o contágio como uma razão para reprimir a mídia.
Certos perigos desaparecerão com o tempo: uma vacina para o COVID-19 deve proteger as pessoas, incluindo jornalistas, de propagar ou contrair o vírus. Entretanto, algumas das medidas adotadas e que restringem a liberdade de imprensa – sejam intencionais ou não – podem continuar no futuro, dizem os especialistas.
É possível que as respostas ao coronavírus possam mudar o paradigma de longo prazo para o jornalismo de maneiras imprevistas, da mesma forma que os atentados de 11 de setembro de 2001 alimentaram a expansão mundial de leis antiterrorismo – e, por sua vez, deram início a uma tendência no aumento do número de jornalistas presos que persiste até hoje.
As violações da liberdade de imprensa global que o CPJ documentou em relação à pandemia podem ser divididas, aproximadamente, em 10 categorias a serem monitoradas (com exemplos citados):
1. As leis contra “notícias falsas”
A pandemia deu aos governos uma nova desculpa para aplicar leis que enquadram penalmente a disseminação de “notícias falsas”, “desinformação” ou “informações falsas”, e ofereceu a eles um motivo para adotar novas normas. Nos últimos sete anos, aumentou o número de jornalistas que foram presos pela suposta prática do crime de espalhar “notícias falsas” ou “notícias incertas”, segundo dados do CPJ.
Carlos Gaio, diretor jurídico da Media Legal Defence Initiative [Iniciativa de Defesa Legal de Mídia], sediado no Reino Unido, disse ao CPJ que as leis sobre “notícias falsas” continuarão a se expandir à medida que os governos tentarem controlar a mensagem sobre o vírus, afetando jornalistas e verificadores de dados. “É um assunto muito complicado proibir algo assim [e] é muito, muito perigoso”, acrescentou ele.
A desinformação é um problema real, mas essas medidas legais dão aos governos o livre-arbítrio para decidir o que consideram falso e enviam uma mensagem intimidante a jornalistas críticos. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump desqualifica frequentemente a cobertura da imprensa sobre o COVID-19 e usa o termo “notícias falsas” quando discorda das reportagens, uma estratégia que o CPJ constatou que efetivamente desacredita os meios de comunicação e mina a confiança do público. Serve como um sinal verde para governos autoritários ridicularizarem e processarem a imprensa em seus respectivos países.
• Na África do Sul, em 18 de março, foram estabelecidas sanções penais por desinformação sobre a pandemia, variando desde altas multas a penas de prisão, uma medida particularmente preocupante, já que o país costuma atuar como um modelo regional.
• Em Porto Rico, território dos Estados Unidos, a mídia foi proibida de “transmitir ou permitir a transmissão” de “informações falsas” em 6 de abril. Os infratores podem ser condenados a até seis meses de prisão e a multas de até US $ 5.000.
2. A prisão de jornalistas
Encarcerar jornalistas é, há muito tempo, uma tática usada por governos autoritários que tentam silenciar o jornalismo crítico. Pelo menos 250 jornalistas permaneciam aprisionados em todo o mundo em dezembro de 2019, quando o CPJ realizou seu último censo anual. Nas circunstâncias em que o COVID-19 está se espalhando, o encarceramento pode ter consequências fatais: os jornalistas estão presos em condições sanitárias insalubres e são forçados a ficar perto de outras pessoas que podem estar infectadas. O CPJ e mais de 190 organizações parceiras instaram as autoridades de todo o mundo a libertar todos os jornalistas aprisionados por seu trabalho.
No entanto, as prisões continuam.
• Na Índia, em 23 de abril, as autoridades do estado de Tamil Nadu detiveram o fundador do portal de notícias SimpliCity e o acusaram de violar a draconiana Lei de Doenças Epidêmicas e outras leis. O site havia divulgado supostos atos de corrupção do governo nos esforços de distribuição de alimentos relacionados à pandemia.
• Militares da Jordânia prenderam dois jornalistas do canal de TV Roya, em 10 de abril, por uma reportagem sobre reclamações de trabalhadores pelo impacto econômico de um toque de recolher.
• As autoridades somalis detiveram um editor do Goobjoog Media Group em 14 de abril e o acusaram de espalhar notícias falsas e ofender a honra do presidente, depois que o jornalista postou críticas no Facebook sobre a gestão da crise pelo governo.
3. Suspensão do direito à liberdade de expressão
As medidas adotadas por alguns governos revogaram ou suspenderam o direito à liberdade de expressão durante o período do estado de emergência.
• A Constituição da Libéria protege a liberdade de expressão “exceto durante uma emergência” e concede ao Presidente o poder de “suspender ou afetar certos direitos, liberdades e garantias” durante um estado de emergência, como o estabelecido em 11 de abril.
• Em 16 de março, o governo de Honduras declarou um estado de emergência temporário que suspendeu vários artigos da Constituição, incluindo o que garantia o direito à liberdade de expressão (embora o governo tenha revertido essa medida dias depois).
4. Censura direta, on-line e off-line
Autoridades de vários países suspenderam a impressão e distribuição de jornais, no que chamaram de esforço para conter a disseminação do COVID-19. Em outros Estados, os órgãos reguladores dos meios de comunicação bloquearam sites ou removeram artigos com cobertura crítica.
• Jordânia, Omã, Marrocos, Iêmen e Irã suspenderam a distribuição de jornais em março.
• O Tajiquistão bloqueou o site de notícias independente Akhbor em 9 de abril, depois da publicação de uma reportagem crítica ao governo.
• O órgão regulador de mídia da Rússia, Roskomnadzor, ordenou que a estação de rádio Ekho Moskvy retirasse uma entrevista com um especialista em doenças e que o site de notícias Govorit Magadan removesse um artigo sobre a morte de um morador local por pneumonia.
5. Ameaça e assédio a jornalistas, on-line e off-line
Funcionários governamentais e cidadãos responderam com violência e ameaças a coberturas críticas sobre a resposta à pandemia. Em lugares onde o ambiente para o exercício do jornalismo já era perigoso, a situação ficou ainda mais difícil.
• O líder da Chechênia, Ramzan Kadyrov, ameaçou uma repórter do Novaya Gazeta depois que ela escreveu em 12 de abril que os chechenos haviam parado de relatar sintomas de coronavírus por medo de serem rotulados de “terroristas”.
• Jornalistas haitianos foram agredidos por homens não identificados no Escritório Nacional de Identificação do governo em 2 de abril, enquanto investigavam alegações de que o órgão estava violando as diretrizes do COVID-19 sobre distanciamento social.
• Em abril, soldados de Gana que estavam aplicando restrições relacionadas à pandemia agrediram jornalistas em dois incidentes separados.
6. Requisitos de acreditação e liberdade de circulação restrita
As autoridades restringiram a capacidade dos jornalistas de se movimentarem livremente, como quando querem realizar uma cobertura durante o toque de recolher ou entrar em hospitais para obter um testemunho em primeira mão dos cuidados de saúde. Às vezes, a imprensa recebe acesso especial, mas exigir que os membros da mídia tenham credenciais de imprensa emitidas pelo governo permite que os líderes decidam quem será considerado jornalista.
A pesquisa do CPJ mostra que isso deixa em aberto a possibilidade de excluir aqueles que não são ligados a grandes grupos de comunicação e os que publicam críticas às autoridades.
• Em 23 de março, policiais da Índia agrediram pelo menos quatro jornalistas em três incidentes separados em Hyderabad e Délhi quando eles transitaram para ou do trabalho durante o confinamento, apesar de as autoridades nacionais terem declarado que os jornalistas estão isentos das restrições.
• A Nigéria exigiu que os jornalistas levassem um cartão de identificação válido para se deslocar em certas áreas confinadas, incluindo a capital Abuja, e outorgou permissão a apenas 16 jornalistas para entrar na Villa Presidencial de Aso Rock, local de trabalho e residência do presidente.
7. Acesso restrito à informação
As leis sobre liberdade de informação que permitem aos jornalistas solicitar dados e registros governamentais foram suspensas. Eventos governamentais aos quais os jornalistas costumam participar foram transferidos para a Internet, com graus variados de acesso à imprensa. Nos EUA, o antagonismo de Trump com os jornalistas é um péssimo exemplo para as autoridades estaduais e municipais do país.
Gaio disse ao CPJ que essas tendências provavelmente persistirão. “[Os governos] tornarão mais difícil aos funcionários fornecerem informações. O acesso à informação levará mais tempo e se tornará mais complicado para os jornalistas acessar espaços públicos devido aos riscos de infecção”, afirmou.
• O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, assinou em 23 de março uma lei que suspende os prazos para que autoridades e instituições públicas respondam a solicitações de informações e suprime recursos em caso de negativa. (O Supremo Tribunal Federal revogou a medida em 30 de abril, segundo informações da imprensa.)
• Governadores e prefeitos dos Estados Unidos criaram diferentes mecanismos de acesso a conferências de imprensa em todo o país. Em 28 de março, o governador da Flórida proibiu uma repórter de participar de uma entrevista coletiva depois que ela perguntou sobre medidas de distanciamento social.
8. Expulsões e restrições de visto
Para controlar a narrativa de como o governo está respondendo ao COVID-19, alguns Estados estão sendo hostis à mídia estrangeira, que em alguns lugares tradicionalmente desfruta de maior liberdade do que a imprensa nacional para reportar criticamente.
• A China e os Estados Unidos estão envolvidos no acesso de jornalistas desde o início de 2020. Entre os desdobramentos: em fevereiro, a China forçou a saída de três repórteres do Wall Street Journal, aparentemente em retaliação à manchete de um artigo de opinião sobre o COVID-19. Em março, os EUA impuseram um limite de 100 vistos para a mídia estatal chinesa. A China revidou com a suspensão dos vistos de pelo menos 13 repórteres norte-americanos do The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal.
• O Egito expulsou a repórter do The Guardian Ruth Michaelson em retaliação por sua reportagem de 15 de março que colocava em dúvida as estatísticas oficiais do governo sobre a pandemia.
9. Vigilância e rastreamento de contatos
Governos de todo o mundo estão monitorando dados de localização de telefones celulares e testando ou introduzindo novos aplicativos de rastreamento para acompanhar a disseminação do COVID-19, de acordo com informações da imprensa. A vigilância pode colocar em risco o sigilo das fontes jornalísticas. Os sistemas são introduzidos com supervisão limitada e podem durar muito tempo após a pandemia.
“Sempre existe a preocupação que situações de emergência criem novas expectativas básicas para que tipo de vigilância o governo está autorizado a realizar. Certamente vimos isso após os ataques de 11 de setembro, mas creio que a mesma questão se apresenta agora”, disse Carrie DeCell, advogada do Knight First Amendment Institute [Instituto Knight da Primeira Emenda] em Nova York. “Ações que poderiam ser justificadas nesse contexto específico certamente não teriam fundamento quando os governos controlarem essa pandemia e uma vez que a crise diminua em algum momento no futuro próximo”.
David Maass, pesquisador sênior da Electronic Frontier Foundation, com sede em São Francisco, concordou que, uma vez que os órgãos de aplicação da lei recebem uma nova tecnologia, é difícil retirá-la. “Vemos que hoje eles a estão usando para esse perigoso vírus, mas não sabemos o que acontecerá mais tarde”.
• As empresas de telecomunicações na Itália, Alemanha e Áustria estão entregando dados de localização a autoridades de saúde pública, embora agregados e anônimos; os governos da Coréia do Sul e da África do Sul estão monitorando a localização de telefones móveis individuais, e o governo de Israel autorizou os agentes da segurança a acessar a localização e outros dados de milhões de usuários de celulares.
10. Medidas de Emergência
Governantes autoritários podem adotar uma abordagem oportunista das medidas de emergência e incriminar penalmente ou restringir as atividades jornalísticas, como o CPJ documentou anteriormente.
• O parlamento da Hungria, em 30 de março, aprovou um conjunto de leis de emergência que permitem ao primeiro-ministro Viktor Orbán governar por decreto.
• Em 26 de março, a Tailândia introduziu um estado de emergência que permite ao governo “corrigir” as notícias que considere incorretas e a prestação de queixas contra jornalistas sob a Lei de Crimes de Computador, que aplica penas de cinco anos de prisão por violações.
Com muitos países ainda em estado de emergência, que concedem às autoridades o poder de governar por decreto – e o vírus apenas começando a difundir-se em alguns países em desenvolvimento – mais restrições também podem estar a caminho.