Os assassinatos, em junho, do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que a polícia suspeita terem sido mortos por pessoas ligadas à pesca ilegal na Amazônia, foram um “pesadelo” que virou realidade, disse ao CPJ, em entrevista telefônica, o jornalista brasileiro Daniel Camargos, que com frequência cobre a Amazônia.
Camargos, repórter investigativo na Repórter Brasil, é um dos jornalistas do país bastante familiarizados com os riscos que enfrentam as pessoas que jogam luz sobre crimes ambientais no Brasil. De acordo com o grupo ambientalista Global Witness, 20 ativistas ambientais foram assassinados no país em 2020.
O Vale do Javari na Amazônia, onde Phillips e Pereira foram assassinados, é reconhecido como uma rota do tráfico de drogas onde atividades ilegais como extração de madeira, pesca, e mineração prosperam e são uma ameaça às populações indígenas locais. Os cortes, feitos pelo Presidente Jair Bolsonaro, nos recursos das políticas de proteção ambiental e indígena encorajaram as ilegalidades, jornalistas disseram ao CPJ.
Globalmente, questões ambientais são um tema perigoso para cobrir. Entre 2009 e 2019, pelo menos 13 jornalistas que cobriam este tema foram assassinados em decorrência de seu trabalho no mundo, de acordo com pesquisa do CPJ citada no “Green Blood” [“Sangue Verde”], um projeto de reportagens do consórcio Forbidden Stories.
Para saber mais como jornalistas cobrem e lidam com riscos na Amazônia, o CPJ entrevistou Camargos e outros três jornalistas brasileiros que já cobriram a região. As entrevistas foram editadas por questões de tamanho e clareza.
Ciro Barros, repórter atuando na cobertura ambiental e de direitos humanos na Agência Pública, veículo de jornalismo investigativo sem fins lucrativos.
Qual é o potencial impacto dos assassinatos de Phillips e Pereira no futuro da cobertura sobre a região?
Esse assassinato é um marco. Ainda estamos anestesiados pelo que aconteceu, desnorteados. Ainda tem que ser pensado nas redações o que isto significa, porque esse tipo de trabalho que o Dom estava fazendo é o trabalho que a gente faz.
A gente foi para Atalaia do Norte [cidade no Vale do Javari] com essa sombra do desparecimento e pensando “o que aconteceu com eles?”. O tempo passando, e a esperança de encontrar eles vivos diminuindo. Teve um impacto emocional enorme. O dia do encontro dos corpos encontro dos corpos foi muito difícil. A gente ficou muitas horas na beira do cais, aguardando a chegada dos corpos.
Foi um misto de sentimentos. Ao mesmo tempo em que é duro lidar com as tragédias e as histórias difíceis, nosso trabalho se torna mais relevante quando estamos perto dessas histórias. Então é uma contradição que carregamos neste trabalho investigativo.
Eu não sei o que vai mudar. Mas aquela certeza que a gente tinha, de que existia um limite [na violência contra jornalistas], essa certeza a gente não tem mais.
Uma pessoa [no Vale do Javari] me disse que já ouviu a ameaça de que [a violência contra aqueles que denunciam crimes ambientais] “isso não vai parar no Bruno”. As pessoas sabem que ali vai voltar a ser um local de ausência do estado em que grupos criminosos se beneficiam. Não dá para imaginar que apenas nossa atuação como jornalista vai gerar uma mudança profunda ali no Vale do Javari. Tem que passar por uma ação do estado [para combater crimes ambientais].
O que é necessário para cobrir a Amazônia, uma região onde a cobertura é complexa?
A cobertura sobre a Amazônia tem uma complexidade logística enorme. Deslocamentos que no mapa parecem perto, na realidade são distantes. A estrada pode ser muito ruim, tem que alugar um carro maior, melhor, 4×4. Tem muitos pontos na Amazônia em que se só se chega pelo rio, mas o barco não passa sempre. Tem que considerar se é época de cheia ou de seca, porque certas áreas ficam completamente inacessíveis em alguns períodos do ano. Tem o custo de alugar um barco, tem o custo da gasolina, e tem que comprar galões de gasolina para estocar porque em muitos lugares não tem nem onde comprar.
Os desafios de comunicação são enormes. Agora em Atalaia do Norte a gente passou por dificuldades de conexão em que a gente não conseguia enviar um texto em word de 1 mega, mandar foto então nem se fala. Mal conseguíamos acessar a internet para checar certas informações.
Lá se paga tudo em dinheiro vivo, não dá para comprar com cartão.
E, na incursão à floresta, ainda tem desafios relacionados à saúde, de pegar certas doenças, de não ter acesso a água potável, de se machucar e estar muito distante de um posto de saúde.
É caro e não dá para economizar nesses custos logísticos porque tem uma relação entre logística e segurança, e porque você pode perder a história por não conseguir chegar em determinado lugar. Ir o mais equipado possível é importante. Sempre vamos tentar reduzir riscos. Mas no fim tem sempre uma dinâmica que a gente não domina, o imprevisível.
Eu já ouvi gente falando quanto se cobrava para matar um jornalista. Já tive que abandonar cobertura no meio por causa do risco. A maior proteção contra o medo é a informação. Tem que ter informação para entender o contexto local e os riscos. É um trabalho complexo que exige um preparo. A avaliação dos riscos deve ser conjunta, do jornalista junto com o editor e com o veículo.
Daniel Camargos, repórter investigativo cobrindo conflitos no campo e meio ambiente na Repórter Brasil, organização de jornalismo investigativo e direitos humanos
Por que a cobertura ambiental no Brasil é tão importante?
O jornalismo investigativo consegue se aprofundar nos temas, olhamos para as cadeias produtivas, para identificar quem são as empresas que violam direitos ambientais. Na Repórter Brasil a gente não visa o lucro, a gente quer impacto, quer transformar a realidade. A matéria não é para ganhar prêmio, é para melhorar a vida das pessoas que estão sofrendo com os crimes ambientais. No ano passado, descobrimos que uma cervejaria ia construir uma fábrica próxima a um sítio arqueológico onde foi encontrado o crânio da Luzia [um crânio de mais de 11,500 anos importante arqueologicamente]. Essa matéria que levou muito tempo para ser produzida, mas levou a cervejaria a desistir de construir a fábrica no local.
Nossas reportagens também tiveram impactos relativos à cadeia produtiva da carne. Depois de reportagens mostrando a produção de gado em áreas desmatadas, redes de supermercados europeus pararam de comprar desses frigoríficos.
Que cuidados um jornalista deve ter ao cobrir conflitos socioambientais na Amazônia?
Um dos principais cuidados é com a segurança da fonte. O jornalista precisa se perguntar: “a vida dessa pessoa vai melhorar ou piorar com minha matéria?”. A gente chega e vai embora. As nossas fontes ficam. Onde há de crimes ambientais tem pessoas sendo prejudicadas e tem que tomar cuidado com a segurança delas.
Muitos riscos são relacionados a transporte, acidente durante a viagem de carro ou de barco. Tem que prever as questões de infraestrutura para evitar riscos. Criar um protocolo de segurança e cumprir esse protocolo. Tem que fazer uma boa pré-produção, entender quais são os atores locais, as ameaças iminentes. Não é simplesmente ir e entrar na floresta.
Ter um plano de evacuação, uma rota de fuga, e saber exatamente o que fazer se algo der errado. Ter os contatos das autoridades que podem ser acionadas rapidamente. Ao alugar o carro, tem que conferir se o pneu do carro está careca ou não. Em muitos locais da Amazônia não tem sinal de telefone. É importante ter equipamentos de satélite, de rastreamento, e colocar isso no orçamento da viagem. Fazer reportagem na Amazônia é muito caro. Uma viagem de 10 dias com duas pessoas pode sair por 40 mil reais. Para ir em determinados lugares tem até que fretar avião.
Quando acontece algum incidente, tem que avaliar depois para gerar um aprendizado. Tudo isso leva tempo. Mas ao mesmo tempo o medo não pode paralisar a gente.
Eu já sofri ameaça com arma apontada na minha cara quando estávamos em Rondônia cobrindo o confronto entre a polícia e um movimento camponês local. Um policial sem farda abordou a nossa equipe de forma muito agressiva. Eu achei que eu ia morrer.
Depois disso, tive pesadelos, que foram ficando mais violentos. Fui pra Atalaia do Norte fazer a cobertura das buscas por Dom e Bruno. Quando eu vi o corpo dele chegando no saco plástico, a sensação que eu tive na hora é que o pesadelo virou realidade. Foi brutal. Estou ainda um pouco anestesiado com tudo.
Hoje a Amazônia é uma terra sem lei onde imperam aqueles que querem destruir a floresta. O Estado tem que agir para proteger a floresta, o que também ajudaria a garantir segurança de quem defende a floresta e de quem faz jornalismo lá. Cobrir uma terra sem lei é arriscado.
Elaíze Farias, jornalista e co-fundadora da Amazônia Real, agência de jornalismo investigativo independente sediada em Manaus, capital do estado do Amazonas
Qual é o diferencial da cobertura da Amazônia Real sobre a Amazônia?
Estamos sediados aqui na própria Amazônia. Somos testemunhas e vivenciamos a destruição da floresta. O fato de estarmos aqui, relatando, testemunhando, e vivenciando a realidade, isso nos aproxima de certas histórias que retratamos.
Sempre tivemos um posicionamento de dar visibilidade para as populações da região e focando em temas que não são predominantes na grande mídia. Ouvimos as populações que estão vivendo uma determinada violação ambiental, os indígenas, os ribeirinhos.
Nós rompemos com alguns aspectos da mídia ocidental e branca. Não dá para entrevistar, fazer a matéria, e depois não querer saber o que acontece com aquela pessoa, aquela população. Nem sempre reportamos algo na hora em que acontece para dar o “furo”. Fazemos uma cobertura mais cuidadosa que considera a perspectiva daquelas pessoas e de como elas querem que seja contada a história delas. A gente quer destacar as demandas e as experiências das populações amazônidas.
Por que é importante ter uma cobertura dedicada à Amazônia?
A Amazônia é uma região grande, heterogênea. Tem que conhecer sua história, entender por que hoje tem mineração, pecuária, exploração predatória dos recursos naturais que ataca ecossistemas e populações locais.
Ao mesmo tempo que tem a prática de depredação do ecossistema e da floresta, existem as práticas de resistência. São essas histórias que a gente vai sempre contar. Nas nossas reportagens a gente sempre coloca em destaque os grupos que resistem, como os indígenas que denunciam as invasões de seus territórios.
Embora esses problemas tenham raízes históricas, nos últimos com a ascensão do governo Bolsonaro, esse contexto de grandes ameaças, violações, brutalidades na Amazônia se intensificou na Amazônia. Há uma autorização para a exploração, crimes ambientais, invasões de terras indígenas. Não porque ele manda fazer. Mas porque a retórica dele se espalha e as pessoas sabem que não vão ser punidas pelos crimes ambientais.
Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia para a agência Amazônia Real cobrindo conflitos agrários e mineração
O que você diria para um jornalista que vai cobrir a Amazônia?
Eu diria para o jornalista se despir dos preconceitos construídos contra os povos da Amazônia, não exotizar. Se preparar para estar em um local ao qual ele não pertence, respeitar os símbolos, a privacidade e os tempos das populações locais.
Jornalistas têm que abandonar de vez a postura neoloconial que a mídia muitas vezes acaba assumindo nesses locais, de extrair o que quer do local, obter as informações e não dar nenhum retorno para essas comunidades.
Nota dos editores: O gabinete da presidência do Brasil não respondeu ao pedido do CPJ, enviado por e-mail, para comentar sobre a conexão entre as políticas ambientais do governo e a violência contra defensores de direitos e jornalistas na Amazônia.