Andrew Downie / Correspondente do CPJ Brasil
Muito antes de um de seus fotógrafos ser assediado na noite das eleições no Brasil, os editores do jornal O Povo, de Fortaleza, estavam se reunindo com seus leitores e funcionários para discutir o ambiente cada vez mais polarizado e como lidar com isso.
O incidente de 28 de outubro, no qual um fotógrafo foi empurrado e maltratado pelos defensores do recém-eleito presidente Jair Bolsonaro, serviu apenas para confirmar o que já sabiam: o clima para os repórteres estava esquentando e, com um presidente de extrema direita no cargo, é improvável que esfrie em breve.
“Nos dois meses que antecederam a eleição, estávamos tendo discussões constantes”, disse ao CPJ a editora-chefe de O Povo, Ana Naddaf. “Estávamos nos reunindo com leitores em fóruns públicos e fazíamos apresentações para repórteres, especialmente aqueles que cobrem política, sobre como usar melhor as mídias sociais, como identificar notícias falsas e como cobrir a política.”
“Estávamos recebendo muitas demandas, muito mais do que o normal, de leitores questionando nossa postura, nossas manchetes, a forma como cobrimos as reportagens. Atingiu o pico durante o mês eleitoral [outubro], mas achamos que continuará por um bom tempo. A imprensa em geral está se preparando para ser criticada.”
A atmosfera hostil arrefeceu durante o período de transição entre a eleição de Bolsonaro e a preparação de sua posse em 1º de janeiro. Mas as campanhas veementes correram por todos os lados e os efeitos de Bolsonaro falando repetidamente sobre “notícias falsas” deixaram uma marca indelével. Com o aumento das ameaças e da violência contra a imprensa, o CPJ e outras organizações de direitos humanos pediram aos candidatos às eleições que baixassem o tom de sua retórica.
Até 19 de dezembro, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) registrou 155 casos de assédio ou violência física contra jornalistas desde o início do ano. Os jornalistas locais foram os que mais suportaram a raiva crescente, particularmente on-line, mas as hostilidades também afetaram os correspondentes estrangeiros: alguns foram perseguidos por partidários de Bolsonaro enquanto cobriam as celebrações da vitória.
“Durante meu trabalho como correspondente, nunca experimentei um nível semelhante de assédio”, escreveu a repórter holandesa da RTL Nieuws, Sandra Korstjens, no Facebook. Korstjens disse que as pessoas suspeitavam dela quando cobria um evento porque “viam todas as mídias tradicionais como portadoras de notícias falsas”, e acrescentou que um homem a seguiu e tentou intimidá-la. “Felizmente, houve alguns apoiadores que me defenderam no final. Então, para deixar bem claro: isso não é uma declaração política. Isso vai além da política. É a realidade em que vivemos e trabalhamos no momento”, escreveu ela.
O ambiente hostil entre o governo e a imprensa não é novo. Em 1990, em meio a uma guerra de palavras entre a imprensa e o então presidente Fernando Collor de Melo, a Polícia Federal invadiu os escritórios do jornal Folha de S.Paulo.
Outros traçam o início do atual conflito até 2003, quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o poder. O partido reagiu ao que considerou uma imprensa hegemônica contrária ao seu governo, que foi a primeira administração esquerdista da história brasileira, disse Pedro Doria, colunista dos jornais O Globo, O Estado de S. Paulo, e da rádio CBN, de propriedade privada.
Os ataques foram em grande parte retóricos, mas quando milhões de pessoas saíram às ruas para protestar contra a falta de investimentos em serviços de saúde, educação e transporte, por exemplo, eles se tornaram violentos, com dezenas de jornalistas agredidos, como documentado pelo CPJ na época.
A mais recente escalada correu em 2016, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, e quando o sentimento antiesquerdista criou raízes e excedeu esses conflitos em frequência e veemência, disse Doria.
“Essa retórica da esquerda não acabou e agora está presente também na direita e é diferente, são os jovens do 4chan [fórum- e site – norte-americano cujos participantes permanecem anônimos, usam de cinismo, ironia, notícias falsas, atacam sites, e que já chegou ao Brasil, com nomes que terminam com chan] que são extremamente habilidosas em usar a internet e a tecnologia para descobrir e-mails e pessoas e dox [quando obtêm e divulgam documentos e informações pessoais sem permissão], criando um clima de terror”, disse ele ao CPJ. “Minha impressão é que isso vai acontecer mais e mais. Eu acho que a direita está ficando mais agressiva do que a esquerda já foi”.
“Há um clima de ameaças e não há a percepção ou a compreensão de que a imprensa faz parte do sistema democrático, que seu trabalho é analisar e criticar”, acrescentou. “A direita é muito menos sofisticada. Eles pensam que se você não está com eles, então você está contra eles. E se você é contra Bolsonaro, então você é um inimigo da nação”.
Esse senso de nós contra eles também se infiltrou no jornalismo.
Antes do segundo turno das eleições presidenciais, a Federação Nacional dos Jornalistas criticou Bolsonaro e disse que os jornalistas tinham a “obrigação ética de se posicionar contra um candidato que é faz apologia da violência… que elogia torturadores, odeia negros, mulheres, LGBTI+, indígenas e pobres”.
A maioria das organizações de mídia tem se esforçado para lembrar a sua equipe de se manter imparcial. Eles também dobraram seus esforços para garantir que seus jornalistas permaneçam seguros, com lições de como usar as mídias sociais, uma revisão dos procedimentos e equipamentos de segurança e até alertas sobre a cor das roupas a serem usadas nas coberturas políticas – evitar o amarelo para eventos do Partido dos Trabalhadores e o vermelho socialista quando cercados por partidários de Bolsonaro.
Editores de jornais regionais como O Povo e nacionais como a Folha de S.Paulo minimizaram a ameaça em conversas com o CPJ, dizendo que o ambiente sempre agitado do Brasil os acostumou a embates com o governo e o público.
Mas muitos repórteres são menos otimistas. Alguns disseram ao CPJ que alteraram as configurações de suas mídias sociais para o privado e retiraram fotos de seus familiares. Outros deixaram de assinar reportagens e removeram apelidos e outros dados do Twitter para evitar serem assediados ou doxed.
“Acho que muitas pessoas estão intimidadas e com medo de serem atacadas”, disse ao CPJ Patricia Campos Mello, repórter que teve suas contas de telefone e suas redes sociais hackeadas depois de escrever uma reportagem sobre supostas transações ilegais de campanha por partidários de Bolsonaro. “Sou muito mais cuidadosa porque eles estão tentando expor jornalistas. Eu sou mais cautelosa na minha abordagem com as pessoas do novo governo porque eu me preocupo que elas possam usá-la contra mim”.
Se existe um raio de esperança para essas nuvens ameaçadores, é o renovado interesse pela mídia e seu papel.
Bolsonaro e seus apoiadores criticaram a imprensa e deixaram claro que vão governar, como Donald Trump, através das mídias sociais. Bolsonaro difundiu seu discurso de agradecimento pela vitória através do Facebook e muitos dos anúncios sobres seu ministério foram divulgados no Twitter.
Um de seus partidários mais influentes chamou os jornalistas de “os maiores inimigos do povo” e, em comentários que lembram os repetidos ataques de Trump à mídia, Bolsonaro se referiu particularmente com raiva à Folha e ameaçou rever o orçamento do governo para gastos com a mídia.
A Folha imediatamente viu um aumento “significativo” nas assinaturas, informou o editor-chefe Vinicius Mota ao CPJ.
“Há uma reação positiva no sentido de que as pessoas estão reconhecendo o valor do jornalismo profissional”, disse Mota em entrevista no escritório da Folha em São Paulo. “Como o chamado aumento do Trump que aconteceu nos Estados Unidos, há também uma reação positiva aqui”.
• O kit de segurança para jornalistas do CPJ oferece conselhos sobre segurança física, digital e psicológica.
[Reportando de São Paulo]