Andrew Downie / Correspondente do CPJ no Brasil
Felipe Souza estava cobrindo um protesto contra o governo em São Paulo este mês, quando a polícia de choque avançou em sua direção.
Souza estava de frente para os policiais, equipado com um capacete, máscara de gás – para se proteger do gás lacrimogêneo – e vestia um colete à prova de balas que o identificava como repórter da BBC Brasil. Na medida em que as tropas se aproximavam, o repórter se pôs de costas para a parede e ergueu as mãos para mostrar que não estava armado e que não oferecia resistência.
O gesto foi em vão.
” ‘Sai da frente! Vaza! Vaza! ‘ diziam ao menos quatro policiais pouco antes de me atingir com golpes de cassetete no antebraço direito, na mão esquerda, no ombro direito, no peito e na perna direita”, contou Souza ao site da BBC Brasil. “Um deles ainda me chamou de lixo”.
Souza escapou sem ferimentos sérios, mas este incidente sinaliza o risco crescente enfrentado pelos jornalistas que cobrem os tumultuados movimentos políticos e sociais no Brasil.
O Brasil passa por períodos turbulentos desde 2013, quando milhões foram às ruas protestar contra diversos problemas, como o aumento das tarifas de ônibus, gasto desmedido nos estádios da Copa do Mundo e a falta de investimentos em saúde, educação e serviços sociais.
Em agosto, a presidenta Dilma Rousseff, que fora eleita em 2010 e reeleita quatro anos depois, perdeu o mandato após um longo processo de impeachment que muitos qualificaram como ilegítimo.
Manifestantes a favor e contra o impeachment tomaram as ruas para mostrar seu apoio ou oposição, e os jornalistas – especialmente em manifestações a favor do mandato de Dilma e contra o seu sucessor, Michel Temer – foram repetidamente atacados.
Desde os primeiros protestos, em maio de 2013, pelo menos 293 jornalistas, blogueiros e fotógrafos foram vítimas de agressão enquanto cobriam as manifestações, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI).
Dentre as ocorrências documentadas pela associação constam casos de repórteres sendo alvos de gás lacrimogêneo e balas de borracha, agredidos com cassetetes e perseguidos por manifestantes. Segundo alguns dos relatos, a polícia tomou os equipamentos dos repórteres e apagou os dados de câmeras e celulares.
Quase metade dos incidentes ocorreu na cidade de São Paulo, a maior cidade do Brasil, “e mais da metade deles (62%) foi deliberada”, declarou a ABRAJI. “Em outras palavras, o profissional se identificou como jornalista em exercício da profissão. No entanto, foram ainda assim detidos ou vitimados”. A polícia foi responsável por 71% dos incidentes, mas muitos foram perpetrados por manifestastes furiosos com o suposto partidarismo da mídia, de forma que houve um aumento preocupante no número de ataques cometidos pelos mesmos.
Entre janeiro e setembro deste ano, protestantes foram responsáveis por 40% dos ataques à imprensa, de acordo com o ombudsman da Folha de São Paulo, um jornal cuja sede principal fora atacada pelos manifestantes.
A Polícia declarou ter reagido a vândalos, de acordo com relatos.
O diretor de redação da Folha não respondeu aos repetidos pedidos para que cedesse entrevista, assim como os executivos da TV Globo, o braço televisivo do maior império midiático do Brasil, cujos jornalistas são frequentemente visados por conta da suposta postura anti-PT da emissora.
No entanto, editores de outras publicações disseram que teriam de repensar a forma de enviar seus repórteres.
“Nós temos dificuldades em cobrir os protestos”, disse Diego Escosteguy, editor-chefe da revista semanal abertamente anti-Dilma, Época. “A nossa primeira preocupação é com a segurança dos jornalistas, e quando ocorre um protesto há um debate sobre como levar os nossos jornalistas de forma segura até lá. Eu não posso ir. Eu recebi ameaças concretas de que se eu for à uma manifestação contra o Temer ou pró-Dilma eu serei linchado. Eu gostaria de escutar as pessoas, mas não posso, e isto é um sinal do quão tóxicas as coisas se tornaram”. Ele adicionou que recebeu ameaças através de ligações e também por mensagens nas redes sociais.
Os riscos físicos – organizações como a BBC e a Reuters puseram seus jornalistas em treinamentos para ambientes hostis – ocorrem em concomitância com a exacerbação do discurso em ambos os lados do espectro político. O comportamento popular endureceu com o impeachment de Dilma e os jornalistas dizem que suas reportagens estão sendo amplamente perscrutadas.
“Eu trabalhei em muitos países que são extremamente polarizados ou onde as pessoas têm opiniões extremas – incluindo Israel, Haiti, Cuba, Venezuela, México – e isto me surpreendeu aqui, pois o Brasil não tem um histórico deste tipo de tensão política”, disse ao CPJ a repórter do NPR, Lourdes Garcia-Navarro via telefone, de sua casa, no Rio de Janeiro. “Há uma campanha orquestrada por pessoas de dentro e de fora da mídia, para dar a isto uma narrativa, a narrativa deles”.
A situação é ainda mais difícil para jornalistas locais, que enfrentam a pressão não apenas de editores e leitores, mas também dos amigos e da família. O escrutínio, amplificado pelas redes sociais, já ultrapassou há muito os limites razoáveis.
“Nós estamos sendo constantemente acusados de ser a favor da esquerda ou da direita, ou de estar escondendo algo”, disse ao CPJ Caio Quero, Editor-executivo da BBC Brasil. “Acontece todos os dias, de tal forma que, mesmo coisas que não tem relação com política, estão sendo agora relacionadas à política. Se nós escrevemos sobre os direitos das mulheres, ou sobre os direitos indígenas ou sobre racismo, somos chamados de comunistas. E se escrevemos sobre aposentadoria ou reforma trabalhista ou cortes orçamentários somos acusados de ser capitalistas ou agentes do imperialismo britânico”.
A mídia também foi acusada de instigar a divisão.
Revistas populares como a Veja e a Isto É se mostraram a favor do Impeachment, mas a maior parte das publicações tem sido menos partidárias. A situação foi resumida por Glenn Greenwald, repórter correspondente no Rio de Janeiro e co-fundador do The Intercept, que tuitou que haveria razões para denunciar a “mídia oligárquica brasileira como uma ameaça à liberdade de imprensa. “
Glenn Greenwald, que recentemente anunciou o lançamento de uma versão brasileira do The Intercept, respondeu via e-mail os questionamentos do CPJ: “O impeachment foi uma questão complexa e com ponderações de diversas nuances, mas a mídia brasileira cobriu-o ora como um drama maniqueísta, ora clamando para que se concretizasse”. Segundo Glennwald, “Dessa forma (a mídia) contribuiu amplamente para este endurecimento e polarização”.
É difícil prever o que acontecerá a seguir no Brasil, mas há um consenso de que, embora a turbulência institucional tenha passado, será apenas temporária a trégua com a mídia. Os protestos contra Temer devem continuar, e o indiciamento, semana passada, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob acusações de corrupção, acirrou os ânimos ainda mais.
“Eu penso que a situação deve se acalmar um pouco nos próximos meses, mas as reformas propostas não são populares e quando forem postas na mesa eu creio que veremos uma reação dos sindicatos e dos movimentos sociais”, disse o diretor-executivo da BBC. “Penso que estamos no final de um processo, e no início de um outro”.
[Informando de São Paulo]