Por Joel Simon e Samantha Libby
Notícias do assassinato do jornalista James Foley, em 19 de agosto de 2014, surgiram não na imprensa, mas no Twitter. Os órgãos de imprensa enfrentaram questões agonizantes sobre como reportar o homicídio e que partes do vídeo mostrar. Se um grupo ou indivíduo comete um ato de violência e, em seguida, o filma, como as organizações da imprensa tradicional podem noticiá-lo sem amplificar a mensagem de propaganda?
Jornalistas que afluíram para a Síria quando o conflito lá irrompeu, em 2011, não sofreram com tais questões com tanta frequência ou de maneira tão pública. A guerra foi noticiada tanto por correspondentes de guerra veteranos quanto por jornalistas civis locais e os relatos focaram principalmente na violência e seu efeito devastador na população civil.
No outono de 2013, porém, o cenário de reportagem na Síria havia mudado dramaticamente. Sessenta e dois jornalistas haviam sido assassinados e jornalistas estavam sendo sequestrados a uma taxa de um por semana. Grupos rebeldes que antes haviam acolhido os jornalistas, agora os haviam transformado em alvos.
Para a Associated Press, que havia enviado repórteres de sua equipe e freelances para a Síria com frequência, o nível de risco crescente forçou uma recalibração. “Ir para a guerra não é algo novo para nós”, disse o vice-presidente e diretor de fotografia da AP, Santiago Lyon. “O que mudou o jogo para nós foi o sequestro em troca de resgate.”
Incapaz de colocar seus próprios repórteres no conflito, a AP contou com “conteúdos gerados por usuários”, principalmente imagens fornecidas por ativistas e cidadãos locais ou selecionadas nas redes sociais. Essa abordagem criou desafios em termos de garantir a veracidade e combater a parcialidade, mas, como Lyon apontou, “algum insight é melhor do que nenhum insight”. O resultado foi um equilíbrio delicado entre documentação cidadã não profissional e notícias apuradas com cuidado.
A ascensão do Estado Islâmico, também conhecido como ISIS, quebrou esse equilíbrio. Conforme o ISIS ia crescendo, para se tornar a força rebelde dominante na Síria, a organização suprimia todas as fontes de informação independentes em áreas sob o seu controle, ao mesmo tempo em que divulgava por meio de seus próprios canais vídeos terríveis que mostravam execuções de prisioneiros, civis e forças inimigas. Os vídeos intencionavam, simultaneamente, difundir o terror e recrutar seguidores.
Lyon teve dificuldades sobre como reportar os vídeos do ISIS mesmo antes das decapitações dos jornalistas freelancer Foley e Steven Sotloff. Os vídeos muitas vezes mostravam eventos que eram claramente de interesse jornalístico, como o que o ISIS alegou ser o assassinato de mais de 1.700 soldados xiitas perto de Tikrit. Lyon decidiu distribuir imagens e clipes do vídeo para clientes da AP, omitindo os detalhes mais gráficos.
“Eles estão divulgando essas coisas por [um] motivo”, disse Lyon. “O desafio é mostrar a realidade sem sucumbir à propaganda.”
Lyon, claro, entendeu que por meio do uso das redes sociais e da internet, os vídeos do ISIS atingiram uma audiência de massa, independentemente das deliberações cuidadosas da AP e de outros órgãos de imprensa. Ele reconheceu que a estratégia do ISIS é contornar os órgãos de imprensa tradicionais e atingir o público-alvo de forma direta. Afinal, os combatentes do ISIS não concedem entrevistas. Eles falam diretamente para as câmeras.
Apesar da atenção e condenação internacionais que os vídeos do ISIS têm atraído, a documentação da violência por parte daqueles perpetrando os atos não é nova. Dos nazistas ao Khmer Vermelho, Estados burocráticos têm documentado sistematicamente seus próprios graves abusos, incluindo genocídio. De fato, muitos mecanismos modernos de direitos humanos foram construídos com base na indignação provocada por tais imagens. O governo Mubarak, no Egito, e o governo Assad, na Síria, estão entre os muitos regimes a documentar suas próprias sessões de tortura. Soldados – incluindo a equipe do serviço dos EUA que filmou a tortura e humilhação em Abu Ghraib – historicamente narraram suas ações no palco da guerra.
Mas nenhuma dessas imagens foi destinada ao consumo público e os jornalistas que as disseminaram cumpriram seu papel profissional de expor abusos sigilosos. A dinâmica apresentada por uma nova geração do que pode ser chamado de “vídeos perpetradores” é muito diferente porque não há como noticiar os vídeos sem contribuir, em algum grau, com os interesses daqueles perpetrando a violência. O paradoxo é o mesmo na cobertura de vídeos produzidos pelo ISIS na Síria, pelos cartéis de drogas mexicanos ou por outros protagonistas não estatais, como o Boko Haram, na Nigéria. Tais organizações não estão apenas produzindo vídeos; elas estão agindo como meios de comunicação concorrentes.
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A estratégia de mídia do Estado Islâmico não se desenvolveu no vácuo. Ela foi adaptada daquela empregada por outros grupos islâmicos, principalmente a Al Qaeda no Iraque (AQI), da qual o Estado Islâmico evoluiu.
Antes dos ataques terroristas de 11 de setembro a Nova York e Washington, a Al Qaeda possuía uma abordagem bastante convencional de relações com a imprensa. Como muitos grupos criminosos, políticos e insurgentes fizeram historicamente, a Al Qaeda contou com a imprensa global para transmitir sua mensagem ao mundo. O próprio Osama Bin Laden conduziu coletivas de imprensa que contaram com a presença de jornalistas ocidentais e concedeu entrevistas exclusivas para Peter Arnett, da CNN, e John Miller, da ABC News. Ele utilizou a entrevista de 1997 com Arnett para tornar pública sua declaração de jihad contra os Estados Unidos. Quando indagado sobre seus planos futuros, Bin Laden disse: “Vocês os verão e ouvirão sobre eles na imprensa, se Deus quiser”.
Os jornalistas se sentiam seguros realizando essas entrevistas porque os militantes precisavam da imprensa para disseminar sua mensagem. Peter Bergen, que atuou como produtor da entrevista de Arnett, comentou: “Uma vez dentro do círculo restrito de Bin Laden, você não se sentia ameaçado”.
Mas a relação da Al Qaeda com a imprensa internacional mudou drasticamente depois do sequestro e assassinato do repórter do Wall Street Journal, Daniel Pearl, em janeiro de 2002. Essa decapitação não foi um evento orquestrado para a mídia da mesma forma que os assassinatos do ISIS o foram. De fato, Bin Laden repreendeu seu chefe de operações, Khalid Sheikh Mohammed, que conduziu a execução de Pearl, por chamar “atenção desnecessária à rede”, de acordo com uma notícia publicada pelo The Pearl Project, uma investigação realizada por estudantes da Universidade de Georgetown.
Em 2003, um jordaniano chamado Abu Musa’b al-Zarqawi, que havia treinado nos campos da Al Qaeda no Afeganistão, assumiu a liderança da AQI. Embora Zarqawi tivesse jurado obediência a Bin Laden, o líder da Al Qaeda percebeu-o difícil de controlar. A brutalidade de Zarqawi levou a uma repreensão do comando central da Al Qaeda, que argumentou, como na execução de Pearl, que a violência excessiva alienava tanto a população local quanto potenciais apoiadores internacionais.
Zarqawi não se intimidou. Não só os assassinatos continuaram como Zarqawi também se tornou infame por utilizar a mídia para divulgar sua violência. Acredita-se que ele pessoalmente realizou diversas decapitações filmadas e sua contribuição duradoura para a iconografia dos filmes snuff jihadistas era vestir suas vítimas em macacões laranja, uma referência aos uniformes dos prisioneiros do centro de detenção dos Estados Unidos na baía de Guantánamo, em Cuba. Os reféns norte-americanos e britânicos depois assassinados nos vídeos do ISIS foram obrigados a se vestir da mesma forma.
Zarqawi criou uma operação de mídia compartimentada no Iraque para disseminar esses vídeos de decapitação, que J. M. Berger, editor do INTERWIRE.com e autor de Jihad Joe: Americans Who Go to War in the Name of Islam (Jihad Joe: os americanos que vão à guerra em nome do Islã), chamou de “um precursor terrível e audaz dos vídeos do ISIS”. Antes do YouTube, Facebook e Twitter, esse tipo de vídeo era muito menos acessível e existia apenas em sites e fóruns. Os vídeos também foram enviados do país de origem para os locais de produção de mídia jihadista que os transformavam em minidocumentários e então os enviavam para sites simpatizantes. O próprio Bin Laden continuou a contar com mensagens em vídeo e áudio enviadas à Al Jazeera para atingir um público de massa no mundo árabe. Mesmo quando a “mídia jihadista” surgiu, a dependência da Al Qaeda da mídia tradicional para amplificar sua mensagem fez com que a violência gráfica fosse muitas vezes contida.
A morte de Al Zarqawi em um ataque aéreo dos Estados Unidos, em junho de 2006, acelerou a transição na AQI, que foi absorvida em uma coalizão de grupos insurgentes chamada de Estado Islâmico no Iraque (ISI, na sigla em inglês). O conflito civil na vizinha Síria que irrompeu quatro anos depois forneceu a oportunidade perfeita para que o ISI se expandisse e recrutasse.
Abu Bakr al-Baghdadi, um ex-detento dos EUA e comandante de nível médio da AQI, acabaria por emergir como líder dessa força reconstituída, que ele renomeou de o Estado Islâmico no Iraque e na Síria (Al-Shams), ou ISIS, na sigla em inglês. Quando a Al Qaeda novamente reclamou das táticas brutais do ISIS, temendo que ele tivesse o mesmo efeito alienante que a AQI havia tido no Iraque, Al Baghdadi desafiou a filial síria aliada da Al Qaeda, Jabhat al-Nusra, e emergiu como a força militar dominante na região.
Em fevereiro de 2014, a Al Qaeda denunciou o ISIS como muito violento e negou qualquer aliança com ele. O ex-vice e sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, que uma vez reconheceu o papel poderoso da mídia, dizendo: “Nós estamos em uma batalha, e mais da metade dessa batalha é realizada no campo de batalha da mídia”, discordou dos vídeos do ISIS. O ISIS, declarou Zawahiri em um comunicado, “não é um braço da Al Qaeda, não tem ligações com ela e o grupo não é responsável por seus atos”.
A liderança do ISIS se manteve impassível e continuou não só a se engajar em atos extraordinariamente brutais como também a documentá-los. “Eles não contestam sua caracterização; de alguma forma, eles a adotam”, explicou Berger. “Eles estão mais preocupados em promover sua própria imagem do que em negar suas ações.” Os vídeos serviram aos fins estratégicos de aterrorizar os inimigos, criar uma imagem de invencibilidade e ajudar no recrutamento de combatentes estrangeiros. O porta-voz do ISIS, Abu Bakr al-Janabi, disse à VICE: “As redes sociais são boas para construir uma rede de conexões e recrutamento. Combatentes falam de suas experiências em batalha e encorajam outros a se apresentarem, e apoiadores defendem e traduzem os comunicados do ISIS”.
Richard Barrett, ex-chefe de contraterrorismo do MI6, observou que o rápido avanço do ISIS no norte do Iraque e na Síria permitiu que o grupo militante superasse a produção de mídia relativamente reduzida da Al Qaeda. “Nos últimos 10 anos ou mais, [Zawahiri] esteve escondido na zona de fronteira Afeganistão-Paquistão e realmente não tem feito muito mais do que divulgar poucos comunicados e vídeos”, disse ele à Agência France-Presse. “Enquanto que Baghdadi teve uma produção impressionante – ele capturou cidades, mobilizou enormes quantidades de pessoas, está matando impiedosamente no Iraque e na Síria.”
O ISIS tem utilizado uma estratégia de mídia social para promover seus avanços e divulgar sua crueldade. O grupo manipulou com efetividade as hashtags e métricas de compartilhamento do Twitter para distribuir seus vídeos habilmente produzidos para o público mais amplo possível, de acordo com Profiling the Islamic State, um relatório do Brookings Doha Center escrito por Charles Lister. O ISIS lançou seu próprio aplicativo para Android; criou uma enxurrada de hashtags populares no Twitter, inclusive aquelas utilizadas durante a Copa do Mundo de 2014; e desenvolveu uma rede global descentralizada de atividades nas redes sociais para promover seu conteúdo.
A dependência do ISIS nas redes sociais é sugerida em sua reação ao esforço de agosto de 2014 de remover todas as contas do Twitter ligadas à organização, uma operação supostamente realizada pelo governo dos EUA em colaboração com o Twitter. O que havia sido uma rede próspera e vasta de contas oficiais com dezenas de milhares de seguidores foi dizimada.
Os desmontes foram devastadores, reconheceu Abdulrahman al-Hamid, um apoiador do ISIS com 4 mil seguidores no Twitter. Al-Hamid tuitou em 14 de setembro de 2014: “Nós conversamos muito sobre a exclusão das contas e as formas de se manter firme e estimular as pessoas a continuarem caso suas contas fossem deletadas ou suspensas… Temos de admitir que isso é um desastre e temos de ser pacientes”.
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O Estado Islâmico não é o único grupo contemporâneo produzindo vídeos perpetradores. Outros protagonistas não estatais, como o Boko Haram, têm utilizado transmissões do YouTube para se comunicar com o mundo. As organizações criminosas no México têm se engajado nessa prática há quase uma década.
“O México foi pioneiro no uso do YouTube e das redes sociais para divulgar vídeos aterrorizantes”, de acordo com Rosental Calmon Alves, especialista em imprensa latino-americana e professor da Universidade do Texas, em Austin. “Os cartéis mexicanos estavam muito à frente do ISIS em termos do uso de imagens terríveis.”
Os cartéis têm demonstrado disposição para o uso de imagens gráficas para enviar uma mensagem – muitas vezes, uma mensagem sombriamente distorcida. A cabeça decapitada de um jornalista on-line morto em 2011 na cidade fronteiriça de Nuevo Laredo foi apresentada utilizando fones de ouvido e situada próxima a um teclado. Três anos depois, traficantes que sequestraram uma ativista da mídia social utilizaram sua própria conta de Twitter para anunciar seu assassinato. Eles postaram essa mensagem em 16 de outubro de 2014:
#reynosafollow AMIGOS E FAMÍLIA, MEU NOME VERDADEIRO É MARÍA DEL ROSARIO FUENTES RUBIO. EU SOU MÉDICA. HOJE, MINHA VIDA CHEGOU AO FIM.
Duas fotos se seguiram à mensagem. Uma mostrava Rubio viva, olhando para a câmera. A segunda a mostrava morta no chão, com uma marca de tiro em seu rosto.
As redes sociais forneceram aos cartéis mexicanos uma forma de divulgar os registros visuais das práticas aterrorizantes que eles já empregavam. Que incluíam deixar corpos mutilados em locais públicos, pendurar “narcofaixas” ameaçadoras em pontes e prédios e, em um incidente notório, rolar cabeças humanas decapitadas no chão de uma discoteca. Esses atos serviram como mensagens públicas, tanto para a comunidade como para os cartéis rivais. Inicialmente, as gangues procuraram administrar a cobertura midiática de suas atividades por meio da intimidação a jornalistas e órgãos de imprensa.
Mais tarde, conforme as redes sociais se tornaram integradas à mídia tradicional, os cartéis mexicanos, como o ISIS, mudaram sua estratégia. Não mais limitados à “praça da cidade”, os cartéis utilizaram as redes sociais para atingir um público muito mais amplo. Muitos dos vídeos do YouTube seguem um formato padrão: um membro de um cartel rival capturado é obrigado a responder as perguntas de um interrogador fora da câmera. Uma mensagem ou “confissão” é extraída. Em seguida, a vítima é executada, algumas vezes de forma espetacular. Um dos vídeos mostrava uma decapitação por uma serra elétrica.
Os cartéis começaram a pressionar jornalistas para que noticiassem de forma mais agressiva esses vídeos. Agências de notícias mexicanas enfrentaram as mesmas questões que os órgãos internacionais na cobertura dos vídeos do Estado Islâmico, ou seja, como reportar a notícia sem divulgar propaganda do cartel.
Em 2011, a maioria das principais organizações de imprensa no México concordou com orientações coletivas para a cobertura das organizações de tráfico. O acordo voluntário com 10 pontos, assinado por 50 executivos líderes, convocou a imprensa a rejeitar a violência dos cartéis de drogas, cobri-la de maneira ponderada e evitar retratar os líderes dos cartéis como “vítimas ou heróis”. O acordo foi saudado por agentes do governo, mas diversas organizações de imprensa importantes se recusaram a assiná-lo, denunciando o pacto como uma forma de autocensura que limitaria a cobertura de um tema jornalístico vital. A cobertura sensacionalista foi reduzida, mas não desapareceu. Como Alves comentou, os vídeos forneceram “narrativas visuais dramáticas, o que é difícil para as organizações de imprensa resistir”.
“Nós nunca assinamos esse pacto, porque nós temos uma visão diferente do jornalismo e de como cobrir aspectos da violência”, disse Ismael Bojórquez, editor do diário com base em Culiacán, em Sinaloa, Ríodoce. “Em Sinaloa, a guerra das chamadas narcofaixas continuou e nós geralmente a cobrimos. Nós não sentimos que fomos usados pelos traficantes de drogas. Esses são fatos, e muitos deles têm valor jornalístico. Esse é um momento que requer cobertura maior e mais profunda do tráfico de drogas, e não um recuo.”
Os cartéis logo encontraram um novo meio, um site imensamente popular chamado Blog de Narco. Repudiando os órgãos tradicionais por autocensura, o site fez questão de publicar tudo sem tomar partido – mas apenas hospedar os vídeos permitiu que o trabalho violento dos cartéis fosse visto por uma audiência crescente.
Na Nigéria, um jogo parecido de gato e rato foi conduzido, com esforços intensos por parte das autoridades para restringir a disseminação dos vídeos produzidos pelo Boko Haram que coloca jornalistas em um risco maior. Ironicamente, o Boko Haram ganhou notoriedade internacional por causa de uma bem-sucedida campanha de hashtag no Twitter focada no sequestro em massa de estudantes pelo grupo militante islâmico. A campanha #BringBackOurGirls trouxe atenção mundial para a violência e distúrbios duradouros no norte da Nigéria e conduziu o Boko Haram para o centro das atenções. Mas, no final de 2014, 219 estudantes permaneciam sob sua custódia; esse número inclui todas, exceto aquelas que conseguiram fugir do grupo original de 276. No fim de 2014, vídeos do Boko Haram zombaram de supostas negociações governamentais para libertar as meninas e alegaram que elas haviam sido casadas com combatentes islâmicos.
Apoiadores do Boko Haram também utilizaram a hashtag #BringBackOurGirls para divulgar mensagens de retaliação por meio do YouTube. Em julho de 2014, a AFP distribuiu um vídeo que mostrava o líder do Boko Haram, Abubakar Shekau, rindo e dançando enquanto cantava: “Vocês têm dito ‘Devolva nossas meninas'”. Em seguida, ele acrescenta: “Devolva nosso exército”. O ISIS divulgou um comunicado similar de zombaria, alterando o apelo de Michelle Obama pelas estudantes desaparecidas para “Devolva nosso Humvee”.
O jornalista nigeriano Ahmad Sakida disse que o Boko Haram utiliza as redes sociais e vídeos distribuídos para determinados jornalistas para transmitir suas mensagens ao público. Sakida cresceu em Maiduguri, no estado de Borno, uma região que ele chamou de “vórtice das atividades do Boko Haram”. Os líderes do Boko Haram confiaram informações a Sakida, e por muitos anos ele atuou como o principal contato na imprensa para a organização. Ele regularmente recebia vídeos que documentavam as ações e exigências do grupo. Sakida postava os vídeos no site do seu jornal e rotineiramente os compartilhava com os concorrentes. Os vídeos eram então noticiados e muitas vezes contradiziam as declarações do governo sobre grandes atentados, como o ataque à sede das Nações Unidas em Abuja, em 2011.
“As autoridades querem que haja uma única narrativa quando se trata do terrorismo”, Sakida apontou. Eventualmente, jornalistas nigerianos foram tão pressionados pelas autoridades que se recusaram a noticiar as atividades do Boko Haram. Isto, por sua vez, irritou os militantes, que contavam com a imprensa para divulgar sua mensagem, e eles começaram a realizar ataques físicos aos órgãos de imprensa, como o atentado aos dois escritórios do ThisDay, pelo qual o Boko Haram reivindicou responsabilidade. Sakida, que foi forçado a deixar a Nigéria por causa da pressão do governo, agora vive em exílio nos Emirados Árabes Unidos.
Em última instância, a falta de acesso do Boko Haram à imprensa nigeriana não interrompeu o fluxo de informações. Eles enviam suas mensagens em vídeo com regularidade diretamente ao YouTube, onde atingem centenas de milhares de visualizações. Por causa da pressão na imprensa nigeriana, diz Sakida, eles agora distribuem seus vídeos para a AFP. Um vídeo de outubro de 2014 divulgado primeiro pela AFP refuta alegações de que o líder do Boko Haram, Abubakar Shekau, havia sido morto e incorpora imagens de violência gráfica, incluindo o apedrejamento de supostos adúlteros, a amputação da mão de um suposto ladrão e a aparente decapitação de um piloto das forças aéreas nigerianas capturado.
Os vídeos gráficos distribuídos pelos cartéis mexicanos e pelo Boko Haram têm sido utilizados no México e na Nigéria para minar as alegações dos governos de que estão fazendo progressos na contenção da violência e na proteção dos cidadãos. Os vídeos têm como objetivo realçar a impotência e incompetência do governo em regiões significativas de cada país. Quanto mais são divulgados, maior o impacto. Assim, os militantes têm profundo interesse em garantir a cobertura midiática, enquanto o governo procura suprimi-la. Jornalistas em ambos os países são apanhados no meio desse embate.
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“O avanço de um exército costumava ser marcado por tambores de guerra. Agora é marcado por torrentes de tuites”, escreveu Berger no Atlantic.
Quando o conflito irrompeu pela primeira vez na Síria, grande parte do debate político internacional focava em como aliviar o sofrimento dos civis e confrontar o histórico de violência implacável do regime de Assad. Hoje, o debate é sobre como conter o Estado Islâmico e preservar a estabilidade regional. Isto se dá porque a natureza do conflito mudou, embora também seja uma função de como o conflito é percebido e a efetividade da máquina de comunicação do ISIS. Como observou Santiago Lyon, da AP, as imagens originais emergentes da Síria apresentavam a perspectiva das vítimas. Hoje, muitas das imagens apresentam o conflito a partir da perspectiva dos perpetradores da violência.
Ainda que o ISIS, o Boko Haram e os cartéis mexicanos tenham estratégias e objetivos divergentes, eles são todos protagonistas não estatais com sistemas de comunicação altamente evoluídos que tiram total proveito da ascensão das redes sociais para divulgar sua mensagem. Embora os Estados tenham, por vezes, documentado as atrocidades que cometeram, seu público-alvo era a burocracia interna. Em contraste, esses atores não estatais procuram utilizar a estrutura midiática existente para amplificar o palco para seus atos violentos. Em um cenário midiático em evolução, no qual as redes sociais estão sendo cada vez mais incorporadas pela reportagem tradicional, os vídeos dos perpetradores têm a oportunidade de se tornar notícia. Há agora acesso quase instantâneo às atrocidades que ocorrem em todo o mundo.
A tendência não se limita a grupos militantes organizados. Nesse ecossistema midiático, existe a oportunidade para um perpetrador de violência não só tornar público o ato, mas, também, utilizar a publicidade para amplificar o terror.
“Essa questão tornou-se mais dominante e mais reconhecida por causa das redes sociais”, disse Madeleine Blair, curadora do Human Rights Channel no Witness, que treina ativistas para utilizar o vídeo para a documentação de direitos humanos. “Mas mesmo antes do YouTube nós víamos e escrevíamos sobre um número de padrões de perpetradores registrando e filmando sua própria violência e utilizando o filme como parte da tática de abuso”.
A tendência, acredita Blair, representa um desafio único para aqueles que monitoram e documentam as violações dos direitos humanos, incluindo jornalistas. “Por um lado, o vídeo está expondo e documentando o abuso e, por outro, perpetuando o abuso ou aprofundando o risco à vítima”, disse ela.
O predomínio de vídeos de perpetradores tem levantado graves questões éticas não apenas para jornalistas e órgãos da imprensa, mas mesmo para as empresas de tecnologia que hospedam o conteúdo. Em setembro de 2014, o Guardian informou que um esquadrão especial da polícia britânica agora trabalha diretamente com empresas como o Twitter e o YouTube “para bloquear e apagar cerca de 1.100 peças de conteúdo perturbador por semana, que eles dizem violar as leis de terrorismo do Reino Unido”.
Isso inevitavelmente levantou questões sobre a liberdade de expressão on-line e quem controla o conteúdo na Internet. O Twitter não divulga suas práticas em torno dos bloqueios, mas declarou publicamente: “Nós revisamos todas as contas reportadas contra nossas regras, que proíbem o uso ilegal e ameaças violentas”.
Para Alves, a imprensa tradicional precisa equilibrar o interesse público com a consciência de que a “informação foi criada como uma arma de propaganda”. Já que os vídeos violentos nunca podem ser totalmente suprimidos, a imprensa tradicional deveria adotar um novo papel, não como protetores da informação, mas como “instâncias de verificação”, fornecendo contexto e perspectiva. “Nós estamos passando de um ecossistema midiacêntrico para um ecossistema centrado do eu”, explicou Alves. “A pessoa é o meio.”
O editor mexicano Ismael Bojórquez disse que por causa de sua experiência em Sinaloa, ele aconselha a imprensa internacional a não recuar na publicação de violência gráfica caso ela seja essencial para a história. Ele alertou os jornalistas para “nunca amarrar suas mãos ou tapar sua boca. Isto é fatal para o jornalismo”.
As novas realidades exigem uma mudança fundamental na forma pela qual os jornalistas e os consumidores de notícias se relacionam com a informação, particularmente a informação disseminada por forças violentas e extremas. Quando os meios de comunicação exerciam o monopólio da informação, os jornalistas podiam escolher coletivamente excluir certas vozes. Hoje, esse poder se foi. Ainda que as redes sociais e as novas tecnologias de informação permitam que todos falem, elas não exigem que todos ouçam.
Joel Simon é diretor-executivo do Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Samantha Libby é a gestora de advocacy do CPJ. A seção sobre a estratégia de mídia da Al Qaeda é uma adaptação do livro de Simon, The New Censorship: Inside the Global Battle for Media Freedom (Columbia University Press, 2015).