Quem está autorizado a falar? O que estão autorizados a dizer? Os premiados buscam as respostas Por Kristin Jones
Em 9 de março de 2008, Dechen Pemba, uma professora britânica que vivia em Pequim, embarcou num trem noturno para Xian, uma cidade distante cerca de 560 km a sudoeste. Lá foi recebida por Dhondup Wangchen, que veio de Amdo, onde morava, uma região do planalto tibetano que ocupa a maior parte da província de Qinghai na China. Os dois não se conheciam, eram unidos apenas por um legado e uma rede global de ativistas e exilados que esperam, de várias maneiras, por um Tibete mais livre.
A primavera chega cedo em Xian, e o dia estava radiante. Conversando sobre o propósito do encontro, falavam tranquilamente no dialeto tibetano de Lhasa ao ar livre e longe de outros transeuntes, ou no apartamento de um amigo de confiança de Wangchen. Eles talvez estivessem sendo seguidos, era difícil saber. Quando Pemba foi embora naquela noite, carregava um pacote de fitas, a parte final do trabalho realizado por Wangchen no ano anterior, para levá-las escondidas para fora do país.
Cinco meses mais tarde começaram os Jogos Olímpicos. No mesmo dia, estreou o documentário de 24 minutos de Wangchen, Leaving Fear Behind [Deixando o Medo Para Trás]. “Não sou uma pessoa instruída,” diz para a câmera. “Nunca fui à escola. Mas quero dizer algumas coisas.”
O que se seguiu foi a divulgação de uma série de conversas clandestinas. Wangchen pedia a tibetanos comuns que falassem sobre os Jogos Olímpicos e sobre a China. Um monge, em uma estrada vazia, afirma que os Jogos deveriam defender a liberdade e a paz, e que “como tibetano, não tenho nem uma coisa nem outra.” Um idoso enrugado num cômodo mal iluminado, diz que não sabe o que pensar dos Jogos. “Sinto-me muito inseguro, é como andar no escuro sem saber onde pisar. Não confio nos chineses. Nem um pouco”.
Quem pode se manifestar, o que é permitido dizer e para quem? Em novembro de 2012, o CPJ concedeu seu Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa a quatro jornalistas ao redor do mundo: Dhondup Wangchen, Mae Azango, Azimjon Askarov, e Mauri König. Confrontados com essas questões, os quatro encontraram um meio próprio de respondê-las. As histórias que contam em seguida são relatos de gente simples – não de políticos, não de ricos donos do poder, não de autores intelectuais de crimes. Os jornalistas não se basearam em informações armazenadas em bancos de dados. Suas fontes eram pessoas que tinham algo a contar sobre suas próprias vidas, e que queriam ser ouvidas.
Há muita força na voz de gente comum. Isso fica evidente depois das ameaças e agressões que se seguiram aos relatos. Parte disso – a força de seu trabalho e o motivo das agressões – se deve aos segredos revelados; Mae Azango, uma das poucas mulheres que trabalha como jornalista na Libéria, escreveu sobre um ritual bárbaro de iniciação conhecido por muitos, mas deliberadamente acobertado. Azimjon Askarov registrou o que se passa nos centros de detenção do sul do Quirguistão, onde pessoas acusadas de crimes são presas sem julgamento. O repórter brasileiro Mauri König viajou ao longo da fronteira invisível do país, onde drogas, armas e seres humanos são comprados, vendidos e usados. Dhondup Wangchen relatou uma história que, ao contrário do que foi dito na cerimônia de abertura dos Jogos de Pequim, mostra o poder vacilante de um império que impõe felicidade através de prosperidade.
Os quatro jornalistas foram agredidos também pelo que são. Uma africana criticando sua própria sociedade. Um uzbeque no Quirguistão em um momento de violência étnica. Um jornalista brasileiro no lado errado da fronteira.
Wangchen sabia que estava se arriscando. Antes mesmo de começar o documentário, ele disse à esposa e aos filhos que fossem para a cidade tibetana no exílio de Dharamsala, na Índia. Assim que terminou as filmagens, em março, começaram os protestos no Tibete; o ódio ao domínio chinês que apenas fervilhava, entrou em ebulição. Todos os tibetanos se tornaram alvos de suspeita.
A polícia bateu na porta do apartamento de Dechen Pemba, em Pequim, em julho de 2008 e a escoltou até o aeroporto. Os últimos meses foram terríveis: tinha sido detida e interrogada, seu apartamento revirado. Pelo menos ela tinha a proteção de um passaporte britânico, pensou; ser deportada não era o pior que podia acontecer. “Eu estava mais preocupada com meus amigos tibetanos”, contou. Eles, sim, “poderiam sofrer terrivelmente sem ninguém saber”.
A essa altura, Wangchen já havia desaparecido no sistema carcerário chinês.
Durante a guerra civil na Libéria, Mae Azango passou quatro anos refugiada na Costa do Marfim. Durante alguns dias ficava sem comer. Não era seguro percorrer as ruas. “Podia aparecer alguém e lhe dar um tapa, dizendo que ali não era o seu lugar e que não devia andar por ali”, explicou.
Ela poderia ter tirado quase qualquer lição disso. Adquiriu a afinidade com as pessoas mais vulneráveis e o respeito pela própria luta. “Quando voltei para casa, vivi na pobreza,” contou Azango. “Sei como a gente se sente. É por isso que gosto tanto de fazer reportagens sobre pessoas simples.”
Azango tem escrito sobre violência sexual, pobreza, brutalidade policial; sobre as coisas que ela gostaria de mudar. Era natural que escrevesse sobre mutilação genital feminina. As jovens que passam pelo ritual de iniciação, comum na sociedade Sande na Libéria, são instruídas a nunca comentar nada com ninguém. As autoridades, que às vezes devem seu poder aos líderes tribais que apoiam a prática, hesitam em condená-la. A mídia local não toca no assunto.
“Ninguém fala sobre o tema”, disse Azango. “Todo mundo sabe.”
Mas Azango fazia perguntas, e as pessoas começaram a falar. Uma mulher relembrou o dia, 34 anos antes, quando passou pelo rito: cinco mulheres a imobilizaram e outra lhe extirpou o clitóris. “Dói mais do que um parto quando removem seu clitóris com uma faca porque não anestesiam o local, apenas colocam folhas para cobrir a ferida,” contou à jornalista em uma história que foi publicada em março de 2012 no FrontPage Africa, jornal em Monrovia para o qual Azango trabalha.
A indignação veio rápida após a publicação – não contra a prática, mas contra Azango. Ameaçaram usar violência contra ela. Aparecia gente na redação procurando por Azango, que foi obrigada a se esconder. Não que alguém questionasse a veracidade do que informara. Ninguém a chamou de mentirosa. Ela foi chamada de traidora.
“Dizem que sou liberiana, que eu sou africana. Que eu deveria proteger nossa cultura. Dizem que pego a nossa cultura e a sirvo ao povo branco,” contou Azango. “No mundo ocidental posso até ser heroína. Na minha terra, sou uma profanadora.”
Quando o FrontPage África noticia sobre corrupção, ou até mesmo prostituição infantil, outros meios de comunicação tendem a divulgar seus próprios artigos sobre o mesmo tema, disse Rodney Sieh, redator-chefe e editor responsável pelo jornal. Mas não neste caso. Sieh recebeu um telefonema de um editor de outra publicação. “Ele me disse que não se deve permitir que brancos entrem no nosso país para nos dizer como conduzir a nossa cultura.” Tanto Azango como Sieh rejeitam esse argumento. Afinal, afirmou Azango, ela escreveu a reportagem por uma razão: quer o fim da prática da mutilação genital feminina.
“É para isso que uso minha caneta. Acho que minha caneta tem o poder de fazer o governo mudar,” disse Azango. Se fosse uma branca a escrever o artigo, comentou, seria simplesmente ignorada. Não haveria ameaças. Mas também não haveria um debate nacional. Dessa forma, o governo – resguardado até então na cumplicidade do silêncio – se manifestou contra a prática. Os líderes tribais concordaram com a suspensão da mutilação genital feminina por quatro anos.
Sem uma lei em vigor, há um longo caminho até que esta prática chegue ao fim como deseja Azango. Para a jornalista, que agora já saiu da clandestinidade, a questão ainda não acabou. “Pressione até que algo aconteça,” disse ela, explicando o termo com um acrônimo. “Esse é meu lema: PUSH! [Pressione]!”
Em abril de 2010, protestos no norte do Quirguistão levaram à derrubada do presidente Kurmanbek Bakiyev e à nomeação de um presidente interino, Roza Otunbayeva. Mas o novo governo mostrou-se incapaz de exercer controle total, abrindo espaço para o afloramento de velhas tensões. No sul do país, uma facção pró-Bakiyev se empenhou em consolidar o poder, entrando em conflito com uma minoria uzbeque, predominante na região e vista como politicamente ascendente.
Em junho, irromperam protestos no sul do Quirguistão que duraram menos de uma semana, mas cobraram um preço cruel. De acordo com a Human Rights Watch, 400 pessoas morreram, milhares foram forçados a deixar suas casas, e bairros uzbeques ficaram em ruínas. A maioria dos mortos era uzbeque. A maioria dos que foram detidos em seguida também era uzbeque. Um deles era Azimjon Askarov. O tumulto e a confusão – e a etnia de Askarov – haviam dado a seus inimigos uma excelente oportunidade para silenciá-lo.
Askarov ganhava a vida como pintor, retratando cenas pastoris de Bazar-Korgon, cidade no sul do Quirguistão, e uma série de autorretratos. Seu rosto, com suas faces sulcadas e sobrancelhas grossas, era uma paisagem toda própria. Em 1998, Askarov leu um folheto sobre uma nova organização de direitos humanos e foi para a cidade vizinha de Jalalabad se apresentar como voluntário, conta Valentina Gritsenko, fundadora do grupo.
“Ele era um artista,” disse Gritsenko, “realmente aberto e sensível aos problemas das pessoas. Ele observava o que acontecia ao seu redor e queria fazer algo.” O pintor dedicou-se a este novo trabalho, que era entrevistar as pessoas presas sem julgamento, registrar casos de tortura e monitorar o tratamento das minorias frequentemente discriminadas, muitas vezes de forma sutil. Certa vez, ele conseguiu libertar um acusado de assassinato ao apresentar a suposta vítima, viva; o promotor foi demitido. Escreveu sobre uma mulher estuprada repetidamente, durante sete meses, enquanto estava presa; ela foi libertada.
Askarov acabou formando um grupo local independente de direitos humanos chamado Vozdukh, que significa ar. Seu trabalho foi publicado nos seus boletins semanais e em sites regionais de notícias. Ele abalou carreiras de policiais e promotores. A maioria dos policiais em sua região era quirguiz; muitas pessoas, mas não todas, cujos casos ele defendia eram uzbeques.
Askarov tirou fotos e filmou, também em junho de 2010, a violência que devastava sua cidade. Visitou hospitais e informava os jornalistas sobre a circulação de armas, assim como sobre abusos policiais, inclusive dois tiroteios, contou ao CPJ. Em 15 de junho, ele foi preso e agredido. Foi acusado e condenado por cumplicidade no assassinato de um policial do Quirguistão morto durante a violência, incitação ao ódio étnico e outros crimes. Seu caso estava cheio de inconsistências e era baseado principalmente no testemunho de policiais que conheciam a vítima e possuíam razões para nutrir ressentimentos contra Askarov.
O pintor, defensor dos direitos humanos e jornalista foi condenado à prisão perpétua. Masha Lisitsyna, advogada da Open Society Justice Initiative, está preparando uma queixa à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas pedindo a libertação de Askarov. Ela o visitou na prisão, onde é mantido numa cela fria e úmida do porão. Askarov lembrou-lhe as palavras ditas por um policial nos primeiros dias da sua detenção: Por causa de seus artigos nos criticando, vamos nos vingar de você. Vamos fazer você morrer lentamente. Agora temos oportunidade e tempo para isso.
No rastro da violência de junho de 2010, o CPJ documentou o quase desaparecimento da mídia em língua uzbeque no sul do Quirguistão. A TV Osh e a TV Mezon, duas estações independentes de proprietários uzbeques, foram depredadas e obrigadas a fechar, acusadas de incitar a violência. A TV Osh reiniciou as operações, mas foi transferida para proprietários da etnia quirguiz; a TV Mezon, nunca retomou as atividades.
Agora existem menos oportunidades de debater e menos para se ouvir.
As regiões fronteiriças de grandes países ficam, às vezes, quase invisíveis para os que vivem nos centros urbanos. Pense nos cerrados e no deserto do sul do Texas ou do Arizona, onde milhares de imigrantes a cada ano torcem para continuar invisíveis a caminho do norte. Terras fronteiriças – tanto aqui como lá – podem ser excelentes locais para acobertar crimes.
Mauri König passou a sua carreira revelando as fronteiras que o Brasil divide com seus vizinhos. Em uma série de investigações em 2004 e 2005, conseguiu mapear as rotas de tráfico sexual infantil ao longo da linha divisória com o Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia. Em outra reportagem investigativa, mostrou como a polícia brasileira havia se juntado a grupos criminosos no Paraguai para formar uma rede de roubo de automóveis.
Em 2000, seu trabalho o levou para San Alberto, no Paraguai, que fica a aproximadamente 80 quilômetros da fronteira com o Brasil, onde investigava as misteriosas mortes de adolescentes nas mãos do exército paraguaio. Parado em uma aparente blitz policial rodoviária, König foi arrancado do carro e espancado por três homens. Um de seus agressores enlaçou uma corrente ao redor de seu pescoço e apertou até quase asfixiá-lo. “Você nunca mais vai voltar ao Paraguai”, disseram-lhe. Sua câmera foi destruída e o filme, mostrando crianças dentro do quartel do exército paraguaio, retirado. Riscaram no capô do carro: “Abaixo a imprensa brasileira”.
Os agressores de König contavam com a proteção da fronteira, beneficiando-se de suas lacunas. Ele estava no território deles, afinal; achavam que podiam expulsá-lo. Não consideraram a capacidade que as notícias têm de também atravessar fronteiras e forjar uma comunidade global maior a partir de uma população fragmentada e dividida.
A agressão a König teve o efeito oposto ao pretendido. Tornou-se notícia internacional, chamando a atenção para a história que ele estava contando: o exército do Paraguai havia recrutado menores de idade. König prosseguiu com a reportagem e fez um documentário completo, publicando os nomes de 109 crianças e adolescentes do Brasil, Argentina e Paraguai, o mais jovem com 12 e o mais velho com 18 anos, que haviam morrido em circunstâncias suspeitas durante o serviço militar.
A matéria teve enorme repercussão. A pressão internacional e doméstica no Paraguai levou a mudanças no comportamento do exército. As mortes inexplicáveis pararam e a legislação nacional tornou o serviço militar voluntário, em vez de obrigatório. König diz que a motivação mais importante do seu trabalho é provocar indignação, de modo que seu jornalismo possa ser uma ferramenta de transformação de realidades e pessoas, para deter a injustiça.
“Meu intuito principal é dar maior visibilidade às pessoas excluídas e a seus problemas, que são de fato os problemas de toda a humanidade, só que em menor escala”, afirmou. “Escrevo com a esperança de plantar uma semente de indignação em cada leitor, de modo que cada um, dentro do possível, faça algo para mudar a situação.”
O pequeno documentário que Dhondup Wangchen fez sobre o Tibete em 2007 e 2008 foi extraordinário, disse Robert J. Burnett, que dirige o programa de modernos estudos tibetanos na Universidade de Columbia. Outros documentários eram em geral protestos sobre o sofrimento e a vitimização no Tibete, pedindo solidariedade e exigindo a condenação dos agressores, comentou Barnett. Ou fragmentos coletados por ocidentais, como intrépidos forasteiros desafiando o perigo.
Em vez disso, o filme de Wangchen coloca uma questão: será que o governo e a mídia chineses nos representam?
“O documentário trata os tibetanos como pessoas inteligentes que estabeleceram um contrato com o Partido [Comunista Chinês], e convida-os a discutir o que pensam do contrato, e se as promessas são cumpridas”, disse Barnett. “É uma maneira muito diferente de pensar que nós não vemos, e é típica de discussões internas.”
O filme foi feito enquanto o governo chinês reprimia a liberdade de expressão e de religião na região tibetana oriental onde Wangchen vivia, e que antes gozava de mais liberdade do que o Tibete central. O final das filmagens de Wangchen coincidiu com o início dos protestos que varreram o Tibete. A resposta em seu documentário – que não, o Estado chinês não representa os tibetanos – era a mesma conclusão a qual milhares de outros haviam chegado ao mesmo tempo.
É difícil saber exatamente o que aconteceu com Wangchen. Ele não tem conseguido entrar em contato com sua família; informações fragmentadas chegam através de Jigme Gyatso, um monge que ajudou na elaboração do documentário e foi encarcerado e libertado inúmeras vezes durante os últimos anos. A família de Wangchen sabe que ele foi condenado a seis anos de prisão por subversão e que seu recurso foi negado. Sua esposa, Lhamo Tso, contou que ele contraiu hepatite B na prisão.
O crime de Wangchen foi articular para uma audiência global aquilo que ele e outras pessoas comuns estavam pensando. Seu crime foi ser um entre muitos.
Agora, Tso, uma modesta fabricante de pães e mãe de quatro filhos, leva a mensagem de marido ao redor do mundo. “Minha maior preocupação é a libertação do meu marido Dhondup”, disse Tso. “Mas falo também em nome de todos os prisioneiros do Tibete e das pessoas que estão sofrendo como eu. Falo em nome do povo tibetano.”
Kristin Jones é repórter e vive em Nova York. Em 2011, ela fez parte da equipe ganhadora do Prêmio de Jornalismo Robert F. Kennedy com “Em Busca de Justiça para os Estupros no Campus”, uma colaboração entre o NPR e o Centro de Integridade