Repórteres não podem informar ao público que o crime organizado assumiu o controle do estado mexicano Por Mike O’Connor
Um telefonema anônimo levou a polícia ao cadáver deixado em um campo perto do vilarejo de El Bordo, na região central do estado de Zacatecas. A polícia disse apenas que a vítima era um camponês na casa dos 40 anos, que havia sido agredido e morto a tiros. O corpo já devia estar lá havia alguns dias. Mas o repórter reconhecia o padrão: uma pessoa pobre de uma comunidade rural que não se deixou extorquir pelo cartel dominante ou que, de alguma maneira, atravessou seu caminho. Outras informações poderiam ser apuradas no vilarejo, com os familiares da vítima e alguns vizinhos. Mas o repórter não iria lá, apesar de o local ficar a cerca de uma hora da capital do estado, onde trabalhava. Ele nunca poderia escrever sobre isso. Na verdade, só o fato de conhecer a história e saber o que realmente havia acontecido já colocava a sua vida em perigo.
“Eles podem matá-lo, e eu tenho filhos. Então, mesmo que não pense nisso todas as vezes que vai escrever, também não é uma coisa que possa esquecer,” declarou o repórter. “Essa questão está lá o tempo todo, em algum lugar, sempre. Porque automaticamente já sabe sobre quais temas pode escrever e sobre quais assuntos não pode dizer nada.”
Essas são as regras para os jornalistas no estado de Zacatecas, no México.
O que os repórteres não podem dizer ao público é que o crime organizado dominou Zacatecas, dos desertos às montanhas. Jornalistas contaram ao CPJ que os grupos criminosos controlam completamente, ou quase totalmente, cada um dos 58 municípios. Na maior parte do estado, o controle está nas mãos dos Zetas, o mais cruel e temido cartel do México. Segundo os repórteres, as polícias municipal e estadual estão amedrontadas demais ou recebem subornos. Algumas delegacias estão abandonadas e outras têm policiais que raramente deixam o edifício. Com o início das patrulhas feitas pelo exército, marinha e polícia federal há cerca de um ano, as principais rodovias e algumas áreas rurais se tornaram um pouco mais seguras, mas o estado não pertence aos cidadãos, ressaltam os jornalistas.
Em outros estados, a imprensa foi forçada ao silêncio após os assassinatos de jornalistas – em alguns casos ocorreram uma série de homicídios. Entretanto, em Zacatecas os cartéis não precisaram matar sequer um jornalista para calar a imprensa. De acordo com uma pesquisa do CPJ, este agora é o padrão em muitos estados mexicanos: os cartéis tomam o controle, a imprensa é intimidada e o público fica sem acesso à informação. E, uma vez que não houve mortes entre os jornalistas da região, pouca atenção é dedicada ao generalizado problema da autocensura.
“Todos sabemos o que o crime organizado faz com os repórteres que não seguem as regras nos outros estados. Eles os matam,” declarou um jornalista, conhecido por sua coragem, no pátio de um bar perto da capital do estado. Falando sobre um repórter que fora assassinado em janeiro de 2010 no estado vizinho de Coahuila, acrescentou: “Nós conhecíamos Valentín Valdéz – ele veio aqui uma vez. Ele se sentou nesta mesa. Nesta mesma mesa. Eles o mataram.”
Existem duas crenças falsas, mas muito difundidas entre as elites política e social da Cidade do México. A primeira é a de que todos os repórteres dos estados são corruptos. A segunda é a de que os repórteres foram assassinados ou porque pertenciam a algum cartel e desagradaram aos seus chefes ou porque teriam passado para algum grupo rival. Nem tudo é mentira nessa generalização. Pesquisas do CPJ descobriram casos de corrupção que mancharam o trabalho da imprensa. Isso pode acontecer porque jornalistas querem o dinheiro extra. Mas quando um cartel de assassinos se apodera da sua cidade e manda que você cumpra suas ordens se quiser manter sua família viva, corrupção não é exatamente a descrição correta da situação.
Ainda assim, esse estereótipo de jornalista corrupto teve o efeito de fazer com que líderes políticos do país se sentissem desobrigados de tomar providências contra os letais ataques à liberdade de expressão que vêm acontecendo por todo o México. Por que proteger os corruptos? Por que investigar o assassinato de um jornalista se todos sabem que a vítima estava trabalhando para um cartel? Então, mesmo que o país tenha tomado iniciativas importantes como a adoção de uma emenda constitucional que federaliza os crimes contra a imprensa, não haverá nenhum progresso real até que seus líderes compreendam que seus cínicos pontos de vista estão errados. Eles podem ir até Zacatecas aprender sobre isso.
Lá, os jornalistas demonstram uma profunda responsabilidade por seu trabalho e uma crescente angústia por não poderem desempenhar sua profissão adequadamente. O tormento deles pode ser percebido em entrevistas por todo o estado. Quando o CPJ se encontrou com um grupo de repórteres na cidade de Fresnillo, uma jornalista veterana estava à beira das lágrimas. Ela ficou de cabeça baixa, com o queixo encostado no peito. Então levantou a cabeça para falar a 12 colegas de profissão, e o sofrimento era nítido em seu rosto. No começo, ela disse que o motivo era a frustração pessoal por conhecer a verdade e não poder informar a respeito. Depois, uma verdade mais profunda veio à tona. “Nós fracassamos, decepcionamos as pessoas que contavam conosco para informá-las sobre o que acontece ao nosso redor. Nós tínhamos a responsabilidade de contar a eles, mas não pudemos. Então nós fracassamos com eles.” Alguns concordaram com ela. Outros argumentaram que dizer a verdade era suicídio, e que a autocensura era a única maneira de sobreviver.
Um repórter solitário, amedrontado demais para falar em público, foi ao quarto de hotel de um representante do CPJ, onde desabou em incontrolável choro, um homem tremendo e soluçando encolhido numa poltrona em um canto. “Essas coisas me perseguem durante o sono”, disse ele. “Às vezes, parece uma dor física, porque elas te empurram para duas direções opostas. Você tem que informar as pessoas sobre as coisas que estão acontecendo. Você tem esse dever. Mas não pode cumpri-lo.”
O CPJ conversou com 32 repórteres, fotógrafos e editores em Zacatecas. Alguns dos editores têm posições de destaque em jornais de circulação estadual; alguns dos repórteres trabalham para emissoras ou semanários de pequenas cidades. Todos foram informados que suas identidades permaneceriam confidenciais. Todos concordaram que o crime organizado age como bem entende em todas as regiões do estado e que os jornalistas testemunharam o processo de tomada de controle de Zacatecas, mas tiveram medo de informar a respeito.
São estranhas as coisas que os jornalistas não podem mais levar a público. Não apenas casos como ameaças e denúncias de corrupção policial e de funcionários públicos – essas não seriam visíveis. Mas, na cidade de Fresnillo, a maior do estado, jornalistas contaram que todos sabiam que um dos maiores chefões do cartel Zetas vivia no número 301 da Avenida Huicot. É claro, disseram eles, que se os jornalistas conheciam o local, a polícia também deveria saber, assim como o exército e a marinha, que supostamente estão no estado para fazer o que a polícia não faz. O endereço fica em uma das avenidas mais elegantes da cidade, que possui quatro pistas e pinheiros no canteiro. A casa do líder do cartel dos Zetas era uma das mais novas.
Nenhuma palavra sobre isso foi publicada, disseram os jornalistas de Fresnillo. Eclodiu, então, uma sangrenta disputa entre o líder da gangue, conhecido como Zeta 50, e um rival, conhecido como Zeta 40. Na primeira semana de setembro, segundo vizinhos e repórteres, um trator apareceu e demoliu parcialmente a casa de Zeta 50, como uma humilhação pública imposta por Zeta 40 ao adversário. Depois disso, escombros da casa caíram na calçada e na rua, mas nenhuma notícia a esse respeito foi publicada. Mesmo quando comentavam o assunto, os repórteres sussurravam. E aqueles que trabalham para meios de comunicação estaduais disseram que não falaram com seus editores na cidade de Zacatecas, a capital, porque achavam que seus telefones haviam sido grampeados pelos membros dos Zetas ou pelas autoridades. Era muito arriscado publicar mesmo uma história tão óbvia quanto essa. (Segundo oficiais do país, fuzileiros mexicanos treinados nos EUA prenderam Zeta 50, identificado como Ivan Velázquez Caballero, sob a acusação de assassinato em setembro de 2012. Embora a metade da cidade de Fresnillo soubesse onde Zeta 50 vivia, a pista que levou a sua prisão veio de Washington, informou um agente da lei dos EUA.).
O cartel dos Zetas começou a se infiltrar no estado virtualmente sem que ninguém se desse conta, porque ocorreram poucos tiroteios. Segundo os repórteres, uma pequena força de líderes de nível intermediário do cartel chegou há cerca de cinco anos com utilitários impressionantes, rifles de assalto e grossos maços de dinheiro presos com elásticos. As armas e o dinheiro foram distribuídos aos filhos de empobrecidos agricultores de feijão e pimentão; isso os transformou em pessoas importantes em suas comunidades isoladas nas montanhas. Esses jovens conheciam os cânions e as trilhas no campo muito melhor que os soldados e policiais federais enviados de fora para controlá-los. Mesmo que agora explorem seu próprio povo, também são filhos de Zacatecas. Enquanto isso ocorria, houve um golpe contra a polícia em quase todos os municípios. “Foram muito espertos,” contou um repórter ao CPJ. “Eles foram aos chefes locais de polícia e às pequenas gangues e disseram ‘Nós mandamos aqui agora’. Alguns policiais foram mortos apenas para criar um clima de terror. Serviram como exemplo. Então o restante passou a obedecer ao cartel.”
Zacatecas tem apenas 1,5 milhão de habitantes. Mas está no centro do país. Então grandes rodovias – a rota das drogas para o Norte – cruzam o estado. E por ser um vasto território relativamente vazio, também se torna um bom local para treinar, esconder e distribuir soldados do cartel para qualquer parte do país. E 1,5 milhão de pessoas com pouca proteção policial ainda representa uma boa oportunidade para vendas de drogas, roubos, extorsões e sequestros.
Os mexicanos praticamente não veem notícias sobre esse estado em sua imprensa, exceto por seus belos museus e edifícios coloniais. O México é um país com 112 milhões de habitantes, o que faz com que Zacatecas tenha pouca representação nas estatísticas nacionais de crimes e mortes. E com mais de 50 jornalistas e trabalhadores da mídia mortos ou desaparecidos em todo o território mexicano desde 2007, Zacatecas não parece ser um foco de preocupação com a liberdade da imprensa. Mas isso não leva em consideração dois importantes fatos. Só não há um banho de sangue em Zacatecas porque os Zetas têm muito controle. Apesar de divergências internas no cartel e de tiroteios com gangues rivais nas fronteiras do estado, o bloqueio imposto pelos Zetas é implacável.
O outro fator é o seguinte: mesmo havendo correspondentes de agências nacionais de notícias em Zacatecas, nem eles podem noticiar a verdade. Eles não estão mais seguros que a imprensa local e trabalham seguindo as regras da região. Mesmo que os correspondentes fossem imprudentes a ponto de escrever reportagens que dessem uma imagem real dos acontecimentos que levaram os Zetas ao poder e sobre o que continua ocorrendo, os editores na Cidade do México relataram ao CPJ que não publicariam matérias que colocassem em risco a vida dos correspondentes. Então o público mexicano desconhece o que acontece em Zacatecas. O estado foi tomado por gângsteres assassinos e as pessoas que confiam na imprensa nacional ainda não sabem disso.
“Tivemos que decidir dar um passo atrás e não publicar uma visão completa do quadro nacional,” disse Mireya Cuéllar, editora nacional do jornal La Jornada. “Eu chamaria definitivamente de um passo atrás. Essa é uma decisão muito clara, porque nenhuma reportagem vale a vida de um de nossos correspondentes. Nossos funcionários que cobrem os estados moram lá, assim como suas famílias. Eles estão muito vulneráveis.” A questão maior, então, não é apenas sobre um pequeno estado, mas sobre quantos outros estados aparentemente tranquilos podem estar na mesma situação de Zacatecas.
Uma vez que os jornalistas em Zacatecas não puderam informar ao público sobre a tomada de controle do estado pelo cartel, eles também não puderam expor as falhas do governo estadual. “O fato é que os criminosos entraram e o governo do estado não estava vigilante,” declarou o deputado estadual Saúl Monreal. “A razão pela qual o governo não estava observando é o que todos queremos saber. Porque agora esses homens estão em todos os lugares e ninguém sabe como lidar com eles. O governo do estado está completamente derrotado.” Passando a mão sobre a sua cabeça, como que para mostrar que o governo está se afogando, acrescentou: “Agora, será que os funcionários estaduais foram apenas ineptos? Isso é muita incompetência. Será que também foram ameaçados? Será que alguns foram subornados? Nós não sabemos”.
Jornalistas disseram que não podem chegar ao fundo para descobrir o que deu errado, da mesma forma que não têm como averiguar se funcionários estaduais estão envolvidos com o problema atualmente: é perigoso demais até perguntar sobre os cartéis. Há uma limitada cobertura sobre disputas entre os cartéis e entre as forças do governo e os grupos do crime organizado. São notícias esporádicas, sobre acontecimentos pontuais, não reportagens que possam dar ao leitor uma visão panorâmica do que vem ocorrendo. Mas, disseram os repórteres, quase sempre é perigoso demais se aproximar dos confrontos armados ou, o que é mais provável, o governo isola a área.
Como resultado, a maioria das matérias tem que ser escrita com base no que o governo estadual ou federal alega que aconteceu. E assim os repórteres aprendem a não fazer perguntas. Um jornalista explicou: “Se eu telefono para um oficial de polícia e pressiono por mais informações sobre algum tiroteio, ele começa a fazer sutis ameaças como ‘Por que você é tão curioso?’ Em Zacatecas, isso é uma ameaça.” Outro jornalista disse: “Talvez eu pudesse ir até o departamento de registros de imóveis do município para pesquisar quanto custou uma casa recentemente comprada por um deputado. Mas o funcionário vai me delatar, porque precisarei fornecer meu nome e, de algum modo, ele será divulgado. Por que, em vez disso, não dou logo um tiro na cabeça? Assim, pelo menos, seria mais rápido.”
Não são apenas os cartéis que impedem que as notícias cheguem ao público, de acordo com repórteres e editores. Suas próprias organizações noticiosas têm medo de perder contratos vitais de publicidade com o estado, e a política oficial do estado é que não há nenhum problema com os cartéis. A economia em Zacatecas é relativamente simples. Há minas e fazendas, algum turismo, e dinheiro enviado por mexicanos que trabalham nos EUA. É difícil para qualquer meio de comunicação conseguir contratos substanciais de publicidade. “Muitos de nós sobrevivemos apenas por causa da verba de publicidade gasta pelo estado,” declarou o editor de um grande jornal. Outro editor disse: “Sem dúvida isso faz com que os donos escutem o que o estado tem a dizer. Se o governador telefona e diz que isso ou aquilo é a verdade, então é melhor levar isso em conta.” Há duas administrações atrás, quando jornalistas disseram que os Zetas começavam a chegar, a posição do então governador era de que não havia nenhum problema. O governador atual reconhece que há um problema, mas diz que já está sendo resolvido.
Jerez é uma cidadezinha fundada no século 16. Suas calçadas são emolduradas por altos arcos de pedra e suas praças são cercadas por ferro forjado e hera verde. Não apenas todos se conhecem, como quase todos os seus antepassados também se conheciam. Suas pequenas lojas ficavam abertas enquanto os vendedores saíam para almoçar e as bicicletas ficavam encostadas nos postes, sem cadeados. Isso até três anos atrás, segundo contam, quando a expansão dos Zetas alcançou os assentamentos rurais em torno de Jerez e, depois, a própria cidade. Agora, Jerez é conhecida pelo terror. De acordo com os jornalistas locais, não houve nenhuma reportagem sobre o assunto.
Uma mulher de cerca de 50 anos disse que havia deixado a universidade e a carreira para regressar à tranquilidade de sua cidade natal e cuidar de seus pais idosos. “Só não revele o meu nome”, pediu ela, olhando cuidadosamente para os lados. “As noites costumavam ser quase tão radiantes quanto os dias porque sempre estávamos nas praças e íamos a pé para a casa de uma amiga e de lá para a de uma prima, ou coisas do gênero. Havia músicos que passavam em turnê.” Não mais, essas noites desapareceram. As ruas ficam silenciosas antes do anoitecer. Amigos não entram em muitos detalhes entre si. As pessoas guardam o terror para si, talvez o compartilhem com parentes mais próximos. “Eu ouvi dizer que eles extorquem os taxistas que fazem ponto na praça principal e meu primo tem um táxi lá,” contou um homem. “Meu primo não confirma nem desmente a história. Então deve ser verdadeira. Primeiro eles roubam nosso dinheiro, depois a vida que tínhamos.” Até recentemente, uma família em Jerez ficaria orgulhosa em dizer que possui parentes trabalhando nos Estados Unidos, e que estavam se dando bem lá. Agora ninguém mais quer que saibam dos parentes trabalhando no norte, porque isso pode resultar numa desagradável visita dos Zetas exigindo um pagamento mensal.
Recentemente isolados da família e dos amigos que conhecem há gerações, os habitantes de Jerez também estão isolados da verdade sobre o restante do estado. Em sua pequena cidade eles apenas ouvem boatos sobre o que talvez esteja acontecendo. Eles não podem ver como seus problemas são semelhantes aos de outros povoados e das vastas regiões nativas que os separam.
A autoestrada de Jerez para a capital do estado tem quatro pistas e, às vezes, é patrulhada pelo exército. O trajeto leva em torno de uma hora. Pessoas nos dois extremos da rodovia contam que no início de 2012 os Zetas frequentemente montavam bloqueios e roubavam carros ou assaltavam passageiros de ônibus. Era como no velho-oeste norte-americano. Jornalistas contam que isso ocorria por todo o estado, apesar de agora os militares já terem retomado um relativo controle sobre as grandes estradas. O problema é que o estado é um vasto espaço aberto com poucas faixas pavimentadas. Mesmo que o governo federal tivesse o controle das rodovias, não teriam o controle de Zacatecas.
Na volta de Jerez para a capital, ao longo do lado direito da via, bem perto, havia dois utilitários com civis segurando rifles. Eles estavam patrulhando, mantendo o controle de sua área.
Mike O’Connor é representante do CPJ no México. Ele é coautor do relatório de 2010 do CPJ intitulado Silêncio ou Morte na Imprensa Mexicana.