Andrew Downie / Correspondente do CPJ Brasil
Em 25 de março, pouco antes de dois dos maiores jogos de futebol da temporada começarem no Rio de Janeiro e em São Paulo, um grupo anteriormente desconhecido postou um vídeo on-line que era relevante para todos os envolvidos no jogo. O grupo não tinha nome, mas tinha uma hashtag e sua mensagem era clara: #deixaelatrabalhar.
“Somos mulheres e somos profissionais”, disseram as mais de uma dúzia de repórteres esportivas em um vídeo de dois minutos e meio compartilhado por alguns dos maiores e mais conhecidos clubes e jogadores do Brasil. “Só queremos trabalhar em paz. O esporte é o nosso lugar também. Eu quero respeito”.
O vídeo foi em resposta a uma série de incidentes recentes nos quais mulheres repórteres foram beijadas, assediadas ou sofreram abusos enquanto trabalhavam nos estádios de futebol do Brasil. O assédio não é novo, e não se limita ao Brasil, mas em meio a protestos que pedem igualdade em todo o mundo, foi mais uma indicação de que chegou a hora do acerto de contas.
#deixaelatrabalhar pic.twitter.com/jlw0pQz9a2
— #Deixaelatrabalhar (@deixaelatrab) March 25, 2018
“Nenhuma mulher no jornalismo esportivo no Brasil não sofreu algum tipo de violência”, disse ao CPJ Livia Laranjeira, repórter esportiva da TV Globo e uma das organizadoras da campanha. “Todas nós sofremos e então nos reunimos e decidimos fazer algo juntas.”
A gota d’água, disse Laranjeira, chegou no início de março, após dois incidentes ocorridos em curto espaço de tempo. No primeiro, em 11 de março, Renata de Medeiros, repórter da Rádio Gaúcha, foi agredida por um torcedor do Internacional, que tentou agredi-la depois que ela pediu a ele que repetisse uma ofensa dirigida a ela.
Dois dias depois, Bruna Dealtry, que estava trabalhando para o Esporte Interativo TV, foi atacada por um fã sem camisa que tentou beijá-la enquanto ela fazia uma chamada para o jogo entre Vasco da Gama e o clube chileno Universidad de Chile.
O vídeo foi o começo, mas Laranjeira, Medeiros, Dealtry e cerca de 50 outras repórteres rapidamente expandiram seu foco para se engajar em uma campanha mais ampla visando educar os fãs e melhorar suas condições de trabalho. Elas estão apoiando programas incipientes em alguns clubes para ensinar aos jovens jogadores sobre as leis de gênero e se reuniram com promotores brasileiros que trabalham em eventos esportivos, para incentivá-los a reprimir os responsáveis por assédio ou abuso sexual.
“A injuria racial em estádios, por exemplo, é levada muito mais a sério do que nunca e nós explicamos que os crimes baseados em gênero também precisam ser punidos”, disse ao CPJ a repórter do ESPN Gabriela Moreira, que se reuniu com policiais no mês passado. “Precisamos tornar os promotores mais conscientes e eles precisam dizer à polícia dentro do estádio para agir quando ofensas são cometidas contra as mulheres.”
O apelo ressoou pelo Brasil e certamente vai repercutir em outros lugares. Em todo o mundo, a perícia das mulheres repórteres é questionada e sua aparência é criticada. O assédio, na maioria das vezes on-line, é uma ocorrência diária.
O problema é especialmente agudo na América Latina, onde o futebol é uma paixão e o machismo continua arraigado. De Bogotá a Buenos Aires, e de Manaus à Cidade do México, as repórteres de campo são rotineiramente submetidas a assédio e abusos sexistas, e as ameaças nas mídias sociais são depreciativamente comuns.
O abuso é principalmente dos fãs, mas colegas e até mesmo funcionários dos clubes que elas cobrem foram responsáveis por sexismo. Em 2017, o técnico do clube Internacional, de Porto Alegre, disse a uma repórter que ele não responderia à pergunta “porque você é mulher e provavelmente não joga”. Um comentarista de televisão peruano explicou a uma colega no ano passado como era jogar em um estádio lotado porque “você é mulher e não vai entender.” Depois de criticar um jogador da equipe nacional que havia sido preso por violência doméstica em 2016, a apresentadora colombiana Andrea Guerrero disse que recebeu uma mensagem anônima no Instagram ameaçando sua filha pequena.
A campanha brasileira faz eco a uma similar existente no México, onde duas repórteres criaram uma organização não-governamental para combater “abuso, violência e discriminação”. Marion Reimers, comentarista da Fox Sports, montou a Versus com uma colega em fevereiro de 2017 inspirada por abjeto tuites de vídeo de homens lendo mensagens abusivas enviadas on-line para as jornalistas esportivas dos EUA.
Reimers, como muitas das mulheres que trabalham ao lado dela, enfrentou assédio e ameaças, variando de comentários sexistas e ameaças de estupro ao envio de fotos de um corpo desmembrado. A Versus estabeleceu a tarefa de não apenas destacar a situação enfrentada pelas repórteres, mas também mudar atitudes por meio de seminários e melhorar a inclusão de mulheres repórteres arrecadando dinheiro para bolsas de estudo.
“Você tem que se apropriar de sua narrativa e isso é uma coisa muito poderosa a fazer”, disse Reimers ao CPJ por telefone. “Os trolls são mais corajosos do que na vida real e sempre estarão lá. As pessoas que me dizem essas coisas on-line pedem para tirar uma foto comigo quando me veem andando na rua.”
As repórteres reconheceram que, em alguns dos casos mais recentes, os clubes pelo menos repudiaram publicamente seus fãs. O Internacional disse que expulsou o espectador que abusou de Medeiros e o Vasco da Gama prometeu, em um tweet, agir.
Outros foram mais longe, com grandes clubes tomando medidas corajosas no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março. Os jogadores do Corinthians gravaram mensagens de apoio à campanha Não Significa Não e usaram o slogan em sua camisa, enquanto o Atlético Mineiro entrou em campo com uma faixa incentivando as mulheres a ligar para uma linha de ajuda se enfrentassem violência doméstica.
A resposta à campanha Deixa Ela Trabalhar foi bastante positiva e suas organizadoras estão otimistas de que poderia ser um ponto de virada. No entanto, a mudança de atitudes é um processo longo e complexo e há uma consciência aguda de que a batalha pelo respeito e pela segurança está apenas começando.
“Temos que trabalhar para ter mais mulheres sendo protagonistas em termos de jornalismo esportivo e conteúdo”, disse Reimers. “Parece que crescemos em uma cultura onde, porque temos uma genitália diferente, não podemos falar sobre 22 seres humanos correndo atrás de uma bola. É medieval e estúpido.”
[Reportando de São Paulo]