Em 7 de janeiro, dois homens armados invadiram a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo, matando oito jornalistas e colocando em evidência os riscos que correm os cartunistas. Mas como seu trabalho transcende fronteiras e idiomas, e para simplificar situações políticas complexas, as ameaças sofridas por cartunistas pelo mundo, encarcerados, obrigados a se esconderem, ameaçados com processos jurídicos ou mortos, ultrapassam em muito o extremismo islâmico. Um relatório especial do Comitê para a Proteção dos Jornalistas por Shawn W. Crispin
Traçando Limites : cartunistas sob ameaça
Em 7 de janeiro, dois homens armados invadiram a sede da revista satírica francesa Charlie Hebdo, matando oito jornalistas e colocando em evidência os riscos que correm os cartunistas. Mas como seu trabalho transcende fronteiras e idiomas, e para simplificar situações políticas complexas, as ameaças sofridas por cartunistas pelo mundo, encarcerados, obrigados a se esconderem, ameaçados com processos jurídicos ou mortos, ultrapassam em muito o extremismo islâmico. Um relatório especial do Comitê para a Proteção dos Jornalistas por Shawn W. Crispin
Publicado em 19 de maio de 2015
BANGKOK
Quando o governo da Malásia impetrou ações penais por sodomia contra um dos principais opositores políticos do país, o cartunista Zulkiflee Anwar Ulhaque, conhecido como Zunar, colocou suas canetas de desenho em ação para satirizar o que ele via como um velado jogo de poder político.
Publicados pela primeira vez em Malaysiakini, um site de notícias independente, e outros publicados exclusivamente em um livro de 2014, os cartuns de Zunar retrataram o julgamento de alto perfil como uma trama do governo liderada pelo primeiro-ministro Najib Razak e seu partido Organização Nacional dos Malaios Unidos, para aprisionar seu principal rival político, Anwar Ibrahim.
Em um dos desenhos críticos, Zunar retratou Najib como o juiz que presidiu o caso, com um livro jurídico visivelmente colocado numa lata de lixo; em outro, o primeiro-ministro foi retratado puxando as cordas acima dos juízes desenhados como marionetes de sombra; um terceiro representava Najib montado em um enorme juiz apontando seu martelo a um Anwar de olhos arregalados.
As charges levantaram dúvidas não muito sutis quanto à independência judicial, um tema tabu para a mídia da Malásia. “Os jornais locais e programas de televisão são todos controlados pelo governo. Eles não podem discutir questões polêmicas”, disse Zunar, que tem mais de 100.000 seguidores em mídia social. “O governo teme que meus cartuns virem o povo contra eles”.
As autoridades não aceitaram a sátira de Zunar com bom humor. Ele disse ao CPJ que em janeiro a polícia invadiu seu escritório e apreendeu mais de 100 cópias de seus livros, incluindo um novo volume intitulado The Conspiracy to Imprison Anwar (A conspiração para aprisionar Anwar). Em fevereiro, Zunar foi detido por quatro dias por publicar tuites críticos, incluindo outro cartum de Najib retratado como juiz, minutos após o anúncio do veredito de culpado no julgamento de Anwar.
O humorista enfrenta uma possível pena de 43 anos de prisão por nove acusações de sedição, um crime contra o Estado que leva obrigatoriamente à prisão sob a lei da Malásia. As audiências de seu caso devem começar em 20 de maio. Ele também está sob investigação por duas outras acusações de sedição, incluindo uma pelos livros apreendidos em janeiro e por outro volume, Cartoon-O-Phobia, publicado em 2010, contou Zunar ao CPJ. “Em um regime corrupto, a verdade é sediciosa”, disse Zunar, que teve cinco livros proibidos desde 2010. “Eu vou continuar desenhando até a minha última gota de tinta”.
Editores dos livros do cartunista também estão sob ameaça legal. Zunar disse que as autoridades invadiram as instalações de três de seus editores anteriores, ameaçando revogar suas licenças de publicação e prender os proprietários sob a Lei de Imprensa e Publicação e a Lei de Sedição. Ele, agora, omite o nome do seu editor para proteger a empresa de assédio, apesar de tal anonimato ser ilegal sob a Lei de Impressão.
“O mundo está, infelizmente, acordando para o poder e a influência dos cartunistas, [reagindo] através do exercício da violência e assassinato.”
– Robert Russell
O julgamento de Zunar é emblemático dos riscos enfrentados pelos cartunistas em todo o mundo – um problema trazido nitidamente ao foco após o ataque à revista satírica francesa Charlie Hebdo, em janeiro. Se os seus desenhos tocam em política, economia, religião ou identidade nacional, cartunistas enfrentam as mesmas ameaças graves que jornalistas da imprensa escrita ou transmitida por rádio, televisão ou internet que informam sobre assuntos polêmicos. A pesquisa global do CPJ mostra que cartunistas foram alvo de censura, processos judiciais punitivos, agressão física, prisão, desaparecimento e assassinato por seu jornalismo artístico. Alguns até já fugiram para o exílio para escapar da perseguição.
Essas ameaças aumentam durante períodos de turbulência política, econômica ou civil, de acordo com cartunistas, editores, analistas e advogados que falaram ao CPJ. Enquanto cartunistas usam o humor, a hipérbole, e insinuações para apresentar os seus pontos, eles são muitas vezes alvo de assédio exatamente porque seus retratos satíricos, indireta ou ostensivamente, são capazes de comunicar ideias políticas complexas de uma forma que seja acessível e tenha ressonância entre o público em geral.
“Há quase uma fórmula que podemos reconhecer com antecedência que nos diz quando as coisas estão ficando arriscadas para os cartunistas”, disse Robert Russell, diretor-executivo da Cartoonists Rights Network International, um grupo de defesa e monitoramento baseado nos EUA. “Qualquer Estado falido ou ‘líder de barro’ que vá em direção quer seja de uma eleição ou de algum tipo de transição política, irá sempre reprimir os cartunistas durante tempos de insegurança e conflitos”.
Enquanto a mídia social e outras plataformas baseadas na Internet que privilegiam a mensagem concisa e potente, têm aumentado a visibilidade e o alcance dos cartuns, a capacidade inerente do meio de transcender as fronteiras e idiomas elevou simultaneamente os riscos para aqueles que desenham e divulgam imagens provocantes, apurou o CPJ.
“Em muitos lugares os cartuns atingem pessoas agora mais do que nunca, com o advento das mídias sociais”, disse Aseem Trivedi, cartunista indiano que foi detido temporariamente e enfrentou prisão perpétua por suas representações da corrupção política endêmica, incluindo uma imagem que mostrava o parlamento indiano como um vaso sanitário. As acusações de sedição contra ele foram retiradas em 2012. “Se há uma mensagem que trate de algo maior, há grande chance de se tornar viral e atingir as massas”, disse Trivedi, cujos cartuns aparecem na mídia impressa e online e, muitas vezes, são compartilhados através da mídia social.
Para muitos cartunistas, a fluidez e o alcance têm sido uma faca de dois gumes. Governos repressivos e grupos extremistas têm como alvo aqueles que parodiam ou retratam o Profeta Maomé, um crime sob as leis de blasfêmia em muitos países muçulmanos. O aumento das taxas de penetração da Internet permitiram a inimigos da imprensa, em todos os lugares, monitorar e lidar mais facilmente com os cartuns que consideram censuráveis.
“Ambos, os governos e os intolerantes, monitoram as redes sociais bem de perto, à caça de qualquer sinal de comentário negativo”, disse Russell, acrescentando que o livre fluxo de notícias e informações na Internet mobilizou e radicalizou amplas novas audiências. “O mundo está, infelizmente, acordando para o poder e a influência dos cartunistas, [respondendo] através do exercício da violência e assassinato”.
“Continuarei desenhando até a minha última gota de tinta.”
– Zunar
O assassinato de 12 pessoas, incluindo oito jornalistas e cartunistas da Charlie Hebdo, em Paris, em 7 de janeiro, colocou esses riscos em trágico destaque. Em um dos mais letais ataques contra a imprensa já documentados pelo CPJ, dois homens mataram a tiros a equipe da revista, incluindo o editor Stéphane Charbonnier, numa aparente retaliação por suas charges satíricas do Profeta Maomé. Reportagens da imprensa, citando testemunhas, disseram que os atiradores gritaram “Allahu akbar” (Deus é grande) e referiram-se ao Profeta durante o ataque.
Reações globais divergentes sobre os assassinatos dividiram binários entre liberdade de expressão e santidade religiosa, uma separação que testou a estrutura de muitos países ocidentais culturalmente diversos e cartunistas editoriais em perigo que se atreveram a parodiar questões religiosas. Em uma demonstração de solidariedade com a Charlie Hebdo e de apoio à liberdade de expressão, Russell disse que sua organização publicou mais de 500 desenhos satíricos de todo o mundo. Mas, enquanto a efusão inicial de apoio diminuía, seguiu-se o debate sobre se Charlie Hebdo deve ser mantida como uma campeã da liberdade de expressão.
Esse debate centrou-se sobretudo na linha editorial da revista, com alguns comentaristas argumentando que rompe um princípio de cartuns políticos através de “esmagar” os que não têm poder, em vez de “confrontar” os poderosos e outros dizendo que usam estereótipos raciais. O Centro Norte-Americano PEN, que este mês concedeu a Charlie Hebdo seu Prêmio Coragem de Liberdade de Expressão, contestou esta interpretação em um artigo de opinião no The New York Times. Ao defender sua decisão, o grupo de liberdade de expressão citou o objetivo declarado de Charbonnier de “banalização” de todos os discursos considerados muito carregados para se discutir.
Os assassinatos na Charlie Hebdo tiveram o efeito oposto, testemunhados na disseminação de medidas contra o discurso “ofensivo” e uma maior vigilância dos meios de comunicação em nome do combate ao terrorismo. Um StoryMap compilado pelo CPJ mostrou como a reação ao ataque e ao conteúdo da revista disseminou-se em todo o mundo, independentemente do idioma. Algumas autoridades alegaram que estavam tentando antecipar uma repetição da resposta furiosa às charges do Profeta Maomé publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 2005. Os cartuns, nesse caso, circularam amplamente na Internet, incluindo uma imagem de Kurt Westergaard que mostrava o Profeta usando uma bomba acesa em seu turbante.
Manifestantes raivosos foram às ruas em vários países de maioria muçulmana, resultando em cerca de 200 mortes, de acordo com reportagens da imprensa. Editores que reproduziram as imagens foram despedidos, detidos, ou aprisionados, e várias publicações foram suspensas ou fechadas, mostra a pesquisa do CPJ. A revista online Inspire da Al-Qaeda jihadista mencionou Westergaard e dois de seus colegas da Jyllands-Posten em uma lista de assassinatos de “infiéis” em 2013, de acordo com reportagens.
Westergaard continua a enfrentar ameaças de morte. De acordo com informações da imprensa, em 2008 a polícia frustrou um plano de assassinato por parte de extremistas locais ligados a um grupo terrorista transnacional. Em 2010, um agressor empunhando um machado tentou invadir um “quarto de segurança” que Westergaard tinha construído em sua casa a conselho de autoridades dinamarquesas, depois que a primeira trama contra ele foi descoberta. Uma década depois que o cartum divisionista foi publicado, Westergaard continua sob proteção policial, de acordo com reportagens. “Isso criou muito medo. Eu também estou com medo”, disse Westergaard à BBC depois dos assassinatos na Charlie Hebdo. “O medo de [ataques] não vai desaparecer. Será assim por muito tempo. Claro, haverá algum tipo de autocensura, o que de certa forma é o pior tipo de censura”.
“Meus leitores têm a liberdade de reclamar de modo enérgico e desagradável, como quiserem. Eles apenas não têm o direito de atirar em mim.”
– Signe Wilkinson
Jonathan Shapiro, cartunista sul-africano conhecido como “Zapiro”, compartilhou esse sentimento em uma entrevista com o CPJ. “Cartunistas em todos os lugares estão tomados pelo medo de que esses incidentes sejam imitados”, disse Zapiro. Uma charge que ele desenhou para o Mail & Guardian da África do Sul, em 2010, com o Profeta Maomé deitado no divã de um psicólogo lamentando que “Outros profetas têm seguidores com senso de humor” foi seguido de várias ameaças de morte, disse ele. O jornal publicou um pedido voluntário de desculpas pelo cartum, que foi elaborado em resposta à reação a uma página no Facebook chamando a todos para que desenhassem o Profeta. “Não importa onde você está, alguém vai ver [seus cartuns] e poderá reagir com violência”, disse ele.
Humoristas reconhecem que a crítica é uma via de mão dupla na Internet. “Cartunistas têm que aguentar o tranco também”, disse Signe Wilkinson, cartunista editorial vencedor do Prêmio Pulitzer nos EUA. “Eu já fui chamado de anticatólico, antimuçulmano e ‘próprio Goebbels do feminismo’ – uma pessoa que nunca tentou emular”, disse Wilkinson, que é mais conhecido por seu trabalho no Philadelphia Daily News. “Meus leitores têm a liberdade de reclamar de forma enérgica e ofensivamente como quiserem. Eles simplesmente não têm o direito de atirar em mim”.
Outros cartunistas que foram ameaçados por extremistas fugiram para o exílio ou foram para a clandestinidade. Arifur Rahman, um premiado cartunista de Bangladesh, foi preso em 2007 ao abrigo da Lei de Poderes Especiais do país depois que clérigos muçulmanos locais consideraram que um de seus desenhos, publicado na revista semanal Alpin, retratou o Profeta Maomé como um gato.
Depois de protestos na capital, Dhâka, o jornal pediu desculpas e demitiu seu editor-adjunto, disse Rahman ao CPJ. Mantido por mais de seis meses em detenção preventiva, sujeito a fatwas por clérigos na mesquita nacional Baitul Mukarram que pediram sua morte, e enfrentando acusações de blasfêmia movidas por um imã, Rahman solicitou e obteve asilo na Noruega.
Rahman foi julgado e condenado à revelia a dois meses de prisão, em 2009, por uma caricatura que ele diz que foi grosseiramente mal interpretada. A matriz da revista, Prothom Alo, quase perdeu sua licença de publicação; Rahman disse que jornais locais deixaram de publicar seus cartuns. A pena não cumprida e a pendente ameaça de morte, disse Rahman, significam que nunca será seguro para ele voltar para visitar a família e amigos. Mesmo depois de vários anos no exílio, ele vive discretamente, apagando todas as informações online que poderiam revelar onde trabalha ou mora.
“As pessoas religiosas procuram em todos os lugares por blasfêmia, mas nós cartunistas estamos apenas tentando fazer as pessoas rirem”, disse Rahman, que trabalha como cartunista freelance em Oslo, muitas vezes expondo ao ridículo o extremismo religioso e o terrorismo em nome do Islã. “Eu não imaginava antes de Charlie Hebdo que alguém iria matar só por um desenho… Tenho medo de que ainda estejam à minha procura…”. O medo é bem fundamentado: Este ano, três blogueiros de Bangladesh que haviam criticado questões religiosas foram mortos a machadadas em três ataques separados em Dhâka por agressores que se acredita serem extremistas islâmicos.
O medo de represálias de radicais islâmicos levou a cartunista norte-americana Molly Norris a se esconder depois que ela fez uma convocação irônica em sua página no Facebook, em 2010, para um “Dia de Todos Desenharem Maomé”. Os cartuns de Norris não representavam diretamente o Profeta Maomé, mas incluíam caricaturas de uma xícara de chá, dedal, e dominó, de acordo com reportagens.
Norris recebeu ameaças de morte por parte de extremistas religiosos, incluindo o clérigo da Al-Qaeda baseado no Iêmen, Anwar al-Awlaki, que, antes de ser morto, em 2011, escreveu um artigo no Inspire dizendo que as caricaturas de Norris fizeram dela um “alvo privilegiado” para matar. Ela foi aconselhada pelo FBI a “tornar-se um fantasma,” mudar sua identidade, de sua casa e de trabalho para evitar possíveis represálias. Seu ex-editor, Mark Baumgarten, disse que não tem notícias de Norris desde que ela enviou um breve e-mail de despedida no outono de 2010.
“Os religiosos estão em toda parte à procura de blasfêmias, mas nós cartunistas apenas tentamos fazer as pessoas rirem.”
– Arifur Rahman
os de tomar muito cuidado com esse poder e levar a sério o que vamos fazer com esse poder”, disse Baumgarten, editor-chefe do Seattle Weekly e ex-editor-executivo do City of Arts, publicações para as quais Norris contribuía regularmente. “Molly era determinada, mas, a julgar por sua reação à ameaça, não tinha entendido os riscos e acabou numa situação para a qual não estava preparada”.
Defensor dos direitos dos cartunistas, Russell disse: “Eu acho que poucos norte-americanos entendem que um cartunista no meio de nós teve de entrar no que é efetivamente uma versão do programa de proteção a testemunhas do FBI.” Ele acrescentou: “[Norris] teve de separar-se de seus amigos, seus colegas, sua profissão e sua família, a fim de garantir a sua segurança… Todos os países que protegem a liberdade de expressão devem entender isso e começar a avaliar os custos “.
Em países onde a liberdade de expressão é restrita, a maior ameaça é, muitas vezes, o governo. Jonathan Guyer, um pesquisador com sede no Cairo e editor que tem escrito extensamente sobre o papel dos cartunistas no Oriente Médio e Norte da África, disse que cartuns muitas vezes representam alguns dos comentários políticos mais fortes quando são sufocadas as vozes da oposição e críticas da mídia.
Sua pesquisa mostra que cartunistas usam símbolos, sutilezas e linguagem cifrada para se esquivar da censura, contestar o status quo, e questionar a história oficial de uma maneira que a imprensa escrita, muitas vezes, não é capaz de fazer sob regimes repressivos. “O apelo de um cartum é sempre mais visual”, disse Guyer. “Cartunistas usam todos os tipos de soluções alternativas e truques” para que “críticas duras fiquem, em geral, facilmente despercebidas… Intrinsicamente, cartunistas assumem riscos”.
As charges sarcásticas do cartunista sírio Ali Ferzat ao regime do presidente Bashar al-Assad encarnam essa audácia, de acordo com Guyer. Essa coragem editorial teve um alto custo pessoal: Em 2011, Ferzat foi sequestrado por desconhecidos que propositadamente esmagaram suas mãos para impedi-lo de desenhar, antes de largá-lo em uma estrada, segundo a pesquisa do CPJ. Agora vivendo exilado no Kuwait, ele disse ao Guardian em 2013 que inicialmente ficou com medo de começar a desenhar de novo, mas, ele afirmou: “Se eu não estiver preparado para assumir riscos, não tenho o direito de me chamar de artista. Se não houver nenhuma missão ou uma mensagem no meu trabalho, posso muito bem ser um pintor ou decorador”.
Líderes nacionais irritadiços costumam se vingar de cartunistas ostensivos em suas metáforas. O cartunista sul-africano Zapiro despertou a ira do presidente Jacob Zuma com um cartum que graficamente insinuou que o líder tinha passado por cima do judiciário para obter absolvição em um caso de estupro em 2006.
Em uma caricatura mordaz, Zuma foi mostrado afrouxando suas calças enquanto membros do Congresso Nacional Africano (ANC, sigla em inglês), o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos, e o Partido Comunista Sul-Africano subjugavam uma mulher de olhos vendados usando a faixa “sistema judiciário”. Um membro do ANC foi retratado dizendo: “Vá em frente, chefe”.
“A justiça é em geral representada por uma mulher, um símbolo herdado dos romanos e gregos. Combinado com um cenário político de estupro coletivo, foi uma metáfora muito poderosa sobre o que eu senti que Zuma estava fazendo com o sistema judiciário”, disse Zapiro sobre a imagem, que inspirou a série “Deusa Justiça” de cartuns críticos sobre Zuma e seu [partido] governante ANC.
“Humor e sátira em geral incomodam os muito vaidosos.”
– Bonil
Em 2008, Zuma entrou com queixas de difamação contra Zapiro e o jornal Sunday Times, que publicou a imagem, para obter 5 milhões de rands (cerca de US 400.500 dólares hoje) por danos, alegando que tinham prejudicado a sua dignidade. Sem se deixar abater e desafiante, Zapiro produziu uma charge sequencial de Zuma com as calças desprendidas se aproximando de uma mulher usando uma faixa “liberdade de expressão” e se debatendo nas garras de um membro do ANC.
Depois de quase quatro anos de processos judiciais, Zuma retirou as queixas, alegando que estava preocupado com o precedente que um veredicto de culpado teria sobre a liberdade de expressão, de acordo com um comunicado oficial citado em no noticiário. Na época em que o processo foi descartado, Zuma tinha 12 ações pendentes relacionadas com difamação contra os meios de comunicação, de acordo com informações da imprensa. “Quando os políticos usam processos legais, é uma forma poderosa de intimidação, uma maneira de esmagar os jornalistas”, disse Zapiro. “Felizmente, fomos capazes de afrontá-lo e fazê-lo desistir”.
Em outros casos, os jornais têm aparentemente cedido à pressão do governo. Quando a cartunista Rayma Suprani justapôs um eletrocardiograma normal sob o título “Saúde” com outro intitulado “Saúde na Venezuela”, que fundia a assinatura do falecido presidente Hugo Chávez com um traçado sólido de batimento cardíaco, seus editores do jornal El Universal a demitiram em questão de horas após a publicação da imagem, ela contou ao CPJ.
“O que realmente incomodou foi o uso da assinatura do falecido presidente Chávez no cartum, que desmontou a iconografia sagrada que o governo quer vender aos venezuelanos”, disse Suprani, referindo-se à atual administração do presidente Nicolás Maduro. “O uso desta assinatura em edifícios públicos e de apartamentos foi desmontada, comparando-a a um eletrocardiograma quebrado e a um paciente que estava morto, exatamente como o estado de saúde dos venezuelanos”.
Suprani, veterana de 19 anos no El Universal, disse que o tom crítico de suas charges começou a incomodar seus editores logo depois que a publicação em língua espanhola foi comprada, em 2014, por um consórcio anônimo de investidores privados cujas identidades, de acordo com a Bloomberg, são protegidas sob contrato. Suprani, e outros citados nas reportagens da imprensa, reivindicam que o grupo está em conluio com Maduro. Desde que os novos proprietários assumiram o controle, vários jornalistas foram demitidos ou pediram as contas em protesto contra a percebida postura editorial pró-governo dos editores, segundo a pesquisa do CPJ. (O El Universal não respondeu às consultas do CPJ sobre as alegações de censura pró-governo).
“Semanas antes de me demitirem, meus editores começaram a me censurar, [perguntando] ‘Você não tem outra coisa para publicar amanhã?'”
– Rayma Suprani
“Semanas antes de ser demitida, comecei a ser censurada por meus editores, [que faziam] perguntas como “Você não tem outras opções para publicar amanhã?” disse Suprani, que agora publica seus cartuns em sites independentes. “A ideia era tentar mostrar que você podia amortecer um pouco o seu trabalho e não perder o seu emprego. Mas, no meu caso, isso era impossível, porque eu sou muito comprometida com a liberdade e com meu trabalho”.
O El Universal não respondeu aos pedidos do CPJ para comentar as alegações de Suprani de que ela foi demitida por causa de seu cartum, ou que os editores tentaram censurá-la.
O cartunista equatoriano Xavier Bonilla, conhecido como Bonil, sofreu a censura do governo por suas mordazes caricaturas sobre a administração do presidente Rafael Correa. O CPJ documentou como a Superintendência de Informação e Comunicação (SUPERCOM), um órgão de monitoramento estatal de mídia criado sob o governo de Correa, decidiu em 2014 que Bonil devia “corrigir” um cartum que descrevia uma batida policial na casa de um jornalista que estava investigando um processo do governo contra a empresa de energia Chevron por suposta degradação ambiental na Amazônia. Seu jornal, o El Universo, foi multado em um percentual das receitas trimestrais, no valor de cerca de US $ 95.000.
Este ano, a SUPERCOM determinou que uma das montagens de cartuns de Bonil, que alfinetava uma entrevista desastrada de um jogador de futebol/político do partido do governo de Correa, era uma “discriminação socioeconômica.” A decisão judicial obrigou o El Universo a divulgar um pedido de desculpas por sete dias consecutivos nos espaços na imprensa e online onde as ilustrações de Bonil geralmente aparecem. Também aconselhou Bonil a “corrigir e melhorar” suas práticas jornalísticas e respeitar a legislação nacional sob a ambígua Lei de Comunicações aprovada em 2013 que, segundo o CPJ, tem sido aplicada para abafar as críticas da mídia.
Bonil disse ao CPJ em abril que os promotores estaduais estavam recolhendo evidências em busca de possíveis acusações criminais sobre o cartum. “Custe o que custar, eu preciso encarar o problema, não ceder ao medo, e tentar ser mais criativo”, disse Bonil, enquanto reconhecia que ele tem se esquivado de temas politicamente problemáticos para evitar mais perseguição do governo. “Humor e sátira geralmente incomodam os que são vaidosos… É por isso que eu sempre digo que nós, cartunistas, somos as pombas que embaçam o brilho das estátuas dos arrogantes que acham que nasceram imortais”.
A liberdade de desenhar também é atacada em situações de conflito, mostra a pesquisa do CPJ. O sumiço de Prageeth Eknelygoda, cartunista e jornalista do Sri Lanka que desapareceu voltando para casa do trabalho, em janeiro de 2010, é um exemplo disso. O desenhista sumiu em meio a uma campanha militar do então presidente Mahinda Rajapaksa para subjugar uma insurgência étnica tâmil na região norte do país.
Em um desenho amplamente divulgado, Eknelygoda retratou uma mulher seminua sentada diante de uma multidão de homens sorridentes, com as palavras “a democracia é a preferência da maioria”, escritas na parede atrás dela. A imagem juntou dois temas tabus: os abusos aos direitos humanos amplamente documentados do governo Rajapaksa, incluindo alegações do uso de estupro como arma, e a marginalização dos grupos minoritários sob a regra da maioria étnica cingalesa.
De acordo com a esposa de Eknelygoda, Sandhya, ele estava investigando a suposta utilização de armas químicas pelo governo em áreas tâmeis quando de seu aparente sequestro. Ele também estava planejando apresentar uma coleção de cartuns intitulada “Arte da caverna do século 21” na capital comercial, Colombo, dias antes da vitória eleitoral de Rajapaksa. Antes de ele desaparecer, Eknelygoda, que escrevia para o site independente Lanka E-news, havia sido sequestrado por desconhecidos e recebeu telefonemas ameaçadores sobre suas matérias, mostra a pesquisa do CPJ.
Sandhya disse que, embora ela não possa identificar uma determinada caricatura que possa ter levado ao desaparecimento de seu marido, ela acredita que seus cartuns “desencadearam uma reação”. “Examinando sua coleção de cartuns nos dá ideia da situação política e econômica do país naquele tempo”, disse Sandhya ao CPJ por e-mail. “Sua intenção era acordar as pessoas adormecidas, com medo do regime Rajapaksa, através de seus cartuns, já que todo mundo podia entendê-los com facilidade”.
Enquanto alguns cartunistas políticos deliberadamente escondem seu significado, satiristas também têm sofrido perseguição quando suas intenções são mal interpretadas. O cartunista iraniano Mana Neyestani foi preso e levado ao exílio em 2007, por um cartum de uma criança conversando com uma barata. Parte de uma série humorística de imagens para jovens leitores na revista estatal Irã-e-jomee sobre como repelir insetos, o cartum foi considerado um insulto à minoria azeri, porque a barata antropomorfizada foi retratada falando uma palavra em seu dialeto, disse Neyestani. A reação o levou a ser preso por “publicar materiais provocantes e fomentar a discórdia”.
“Os manifestantes consideraram o cartum parte de uma conspiração governamental contra os azeris. O governo acusou-me de perturbar a segurança nacional. Algumas pessoas me chamaram de racista; outros me chamaram de perturbador da segurança social. Minha narrativa era totalmente alheia”, disse Neyestani, acrescentando que a imagem foi tirada do contexto. “Eu acho que os azeris usaram meu cartum como um pretexto para protestar e mostrar a sua raiva do governo quanto à sua humilhação histórica” por meio de leis e comportamentos discriminatórios.
No final de 2014, Neyestani publicou Uma Metamorfose Iraniana, livro de ilustrações reconstituindo, em detalhe kafkiano, sua desastrada trajetória de três meses em uma prisão iraniana a cinco anos no limbo internacional, enquanto solicitava asilo político, seguido da vida como cartunista no exílio na França. A turbulência, disse Neyestani, lhe proporcionou uma perspectiva exclusiva de seu novo lar, Paris, dos assassinatos na Charlie Hebdo.
“Eles mostram que onde quer que você viva, como cartunista você não estaria seguro, mesmo no coração da democracia e da liberdade você pode ser morto por causa de seu trabalho”, disse Neyestani, que agora desenha caricaturas para os sites críticos de notícias IranWire, rádio Zamaneh, e Tavaana dirigidos por iranianos exilados. “Eu sempre digo que um cartunista é como um paraquedista: nós saltamos de um avião, mesmo que muito ansiosos. É o nosso trabalho e amor, então nós saltamos e esperamos aterrissar em segurança”.
Shawn W. Crispin, jornalista baseado em Tailândia, é representante sênior do CPJ no Sudeste Asiático. O pesquisador associado do CPJ para a Ásia, Sumit Galhotra, contribuiu com a reportagem de Nova Deli, na Índia. E a pesquisadora associada do CPJ para as Américas, Sara Rafsky, fez a tradução em língua espanhola.
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