O presidente prometeu defender jornalistas com um programa federal de proteção, uma promotoria especial, e uma nova legislação tornando a violência contra a imprensa um crime federal. Ele falhou em quase todas as iniciativas. Por Mike O’Connor
Calderón fracassa,
e a imprensa mexicana agoniza
Por Mike O’Connor
Sentado no sofá da sala, com os dois filhos por perto, Jorge Medellín sofria com os pensamentos torturantes que lhe passavam na mente. Agarrava os pulsos, balançava no sofá, percorria a sala e voltava a se sentar. Tinha quase certeza que seria assassinado por causa do que havia escrito, no jornal Milenio, sobre um general do exército mexicano. A história não tinha nada de especial, mas a imagem do general acabou saindo de forma negativa. Para Medellín, que cobria questões de segurança nacional havia 15 anos, os comentários anônimos postados em seu texto no site do jornal eram ameaças de morte. Achava que o governo não iria protegê-lo. Na verdade, achava que, se fosse morto, seria a mando de militares que contariam com o fracasso praticamente completo no esclarecimento de assassinatos de jornalistas.
Os jornalistas no México levam a sério qualquer sinal de ameaça, porque sabem que é fácil matar um repórter sem sofrer consequências. A palavra que define a situação é impunidade. Sem consequências para o assassino, pelo menos. Mas as consequências para o povo mexicano são graves: os jornalistas temem publicar suas informações.
Era essa a realidade que atormentava Medellín. Pensava na possibilidade efetiva de deixar a esposa viúva e os filhos sem pai, por redigir uma notícia simples, mas que ainda assim foi além do que era permitido. “O que há de errado comigo?” disse Medellín. “Por que não previ o que poderia acontecer? Eu conheço essa gente.” Ele já havia procurado amigos no serviço de inteligência civil e militar para pedir proteção. Mas até mesmo estes não estavam certos de que guarda-costas federais poderiam garantir sua segurança. “Eles me dizem que não podem confiar em próprio pessoal, pois se eu for morto nada será investigado”, contou Medellín ao CPJ naquela tarde, 1º de novembro de 2010.
Foi um momento importante na luta contra a impunidade no México. Apenas cinco semanas antes, o presidente Felipe Calderón Hinojosa havia prometido ao CPJ, à Sociedade Interamericana de Imprensa e a todo o país que agiria com firmeza para resguardar a assediada imprensa mexicana. Implantaria um programa de proteção aos jornalistas, um novo promotor especial levaria os assassinos a juízo, e uma nova legislação tornaria a violência contra a imprensa um crime federal.
Mas o CPJ constatou que, em 2011, Calderón e seu governo fracassaram em quase tudo.
O caso de Jorge Medellín, que desconfia do governo a ponto de preferir ficar sozinho a ter guarda-costas federal, ilustra bem a gravidade da crise. O lançamento confuso e demorado do “mecanismo de proteção” para jornalistas ameaçados há mais de um ano, combinado com a inaptidão de uma promotoria especial sem pessoal e incapaz de obter uma única condenação em casos de assassinato de jornalistas, geraram profundo ceticismo entre os profissionais da imprensa. Muitos também observam que o compromisso do presidente de federalizar os crimes contra a imprensa está se evaporando, deixando as investigações para as polícias estaduais, consideradas por todos mais corrupta do que a federal. Será que o presidente, se perguntam, perdeu a vontade política de abordar o problema?
Em 22 de setembro de 2010, Calderón foi claro: “Rejeitamos categoricamente qualquer agressão a jornalistas, porque é um ataque direto à própria democracia”, disse a uma delegação do CPJ e da Sociedade Interamericana de Imprensa. Naquele momento, 32 jornalistas e profissionais de apoio à mídia haviam sido assassinados ou estavam desaparecidos desde que Calderón assumira o cargo, em dezembro de 2006.
Na reunião com os grupos de imprensa, o presidente antecipou a implantação do chamado mecanismo de proteção, um programa que daria ajuda imediata a jornalistas ameaçados, o que incluía desde algo tão simples como oferecer um telefone celular com linha direta para a polícia, até uma assistência mais ativa, como fornecer guarda-costas ou transferência. Os funcionários responsáveis pelo programa inicialmente falaram de centenas de pessoas à procura de proteção, uma vez que há jornalistas ameaçados em várias regiões do país.
Mas, em outubro de 2011, o mecanismo tinha apenas oito casos. Cinco das pessoas na incluídas da lista disseram ao CPJ que a proteção era ineficaz, esporádica ou inexistente. As identidades dos outros três não foram reveladas ao CPJ.
E, em outubro de 2011, Medellín se desligou do programa. Por ele ter receio de contar com guarda-costas federais, o programa pediu à administração da Cidade do México que colaborasse com a proteção. Mas o procurador-geral da cidade se recusou, dizendo que não era da sua alçada. Com isso a tarefa ficou a cargo das patrulhas municipais, uma barreira insuficiente para um grupo de pistoleiros. E mesmo essas patrulhas não apareciam diariamente, contou Medellín ao comitê do mecanismo de proteção que supervisionava seu caso. Quando as patrulhas finalmente começaram a aparecer, sempre o faziam em torno do meio-dia ou uma hora da tarde, o que dificilmente constituiria um obstáculo para os assassinos, disse ao comitê.
O CPJ participou de várias das reuniões a portas fechadas do comitê, prometendo manter o processo confidencial, a menos que Medellín autorizasse a divulgação. Durante meses, teve receio de divulgar seu caso; mas, em outubro, Medellín disse que estava indignado demais com o mecanismo para continuar em silêncio e deu permissão para que o público soubesse que o programa havia fracassado. O programa tinha mantido Medellín por horas em reuniões sobre procedimentos das quais participaram dezenas de burocratas, e em sete delas ele ouviu muitas promessas, mas nunca recebeu proteção de fato. A sorte é que não aconteceu nenhuma tentativa de assassinato, afirmou.
Medellín disse que não sabe o que ocorreu com a investigação das ameaças contra ele. Elas acabaram ficando a cargo da unidade de crime organizado da procuradoria federal, que, segundo ele, se recusou a esclarecer o que havia averiguado. “Se eles soubessem de algo, me diriam”, disse Medellín. “Portanto, o silêncio é uma confissão de fracasso”. Agentes da unidade não retornaram os telefonemas do CPJ em busca de comentários a este respeito.
Os meses de reuniões para discutir planos que pareciam nunca funcionar simbolizam não só os problemas do mecanismo de proteção, mas também as dificuldades gerais do governo. Calderón delegou a tarefa de organizar o mecanismo de proteção à Secretaria de Governo, o órgão mais poderoso em seu gabinete. Mas três secretarias do gabinete, que deveriam contribuir com recursos para o mecanismo, lutavam pelo poder ou procuravam atrasar a instauração do programa, de acordo com três funcionários envolvidos nas negociações durante o ano, que as descreveram como duras e improdutivas.
Esses funcionários dizem que o mecanismo é apenas a aparência de um programa, sem regras estabelecidas de comum acordo e com apenas respostas improvisadas aos problemas dos jornalistas. Não se sabe direito como foi usado o orçamento do programa ou até mesmo o quanto foi orçado. Felipe Zamora, subsecretário de governo que estava no comando do programa, insistiu que o orçamento do primeiro ano era de 11 milhões de pesos (pouco menos de US$ 1 milhão), mas outros funcionários de alto escalão que trabalham no programa disseram que mais do que o dobro havia sido alocado ao programa.
Zamora remeteu as questões detalhadas que o CPJ tinha formulado sobre os gastos a sua secretária particular, que não respondeu a um pedido por escrito sobre informações orçamentárias. (Zamora morreu logo depois, em novembro, num acidente de helicóptero, que tirou a vida de vários funcionários do governo). Qualquer que tenha sido a forma como os fundos foram utilizados, não havia como verificar. Como explicou um funcionário do alto escalão sobre o programa: “O mecanismo não tem poder. Metade dos membros quer que fracasse, pois a responsabilidade traz muito trabalho e problemas. Tudo isso carece de sentido”.
Mesmo que o programa funcionasse perfeitamente em nível federal, grande parte do seu orçamento e expectativas depende de recursos estaduais, como guarda-costas para os casos sob sua jurisdição. Tal dependência reflete um otimismo que beira a irracionalidade; dificilmente um repórter confiaria na polícia estadual para a sua proteção. Mas as coisas ainda nem chegaram a esse ponto – muitos estados sequer assinaram o acordo de cooperação.
Numa entrevista antes de sua morte, o subsecretário Zamora disse ao CPJ que embora a implementação do programa estivesse demorando mais do que o esperado, o governo não podia se dar ao luxo de se acomodar. “Todo começo é difícil”, disse ele, “mas isso não é pretexto para fugir à responsabilidade”.
Mas onde está Calderón, perguntam os críticos, quando o programa está envolto em tantos problemas? Por que ele não instrui seu gabinete para fazer com que o programa funcionasse? Um porta-voz de Calderón não respondeu ao e-mail e a vários telefonemas do CPJ para comentar o assunto.
Vestindo um blusão de moletom e jeans, uma jovem jornalista tilintava a colher em seu copo, sentada num restaurante nos arredores da cidade do México. Olhava seu café como se ali estivesse a resposta para a difícil decisão a tomar. Era 12 de fevereiro de 2011.
A jornalista, de 28 anos de idade, e alguns colegas tinham informações de primeira mão sobre a identidade dos assassinos de um jornalista. A jovem contou ao CPJ que ela e os colegas estavam aterrorizados. E se os assassinos descobrissem que possuíam a informação? Os jornalistas não confiavam na polícia estadual para investigar o caso ou mantê-los a salvo. Procurar as autoridades locais poderia colocá-los em perigo ainda maior. “É tudo uma máfia”, disse ela. Então, fizeram um pacto de permanecer em silêncio.
Por algum tempo ela pensou que não havia razão para contar à polícia o que sabia, pois, afinal, não havia motivo para acreditar que os assassinos seriam punidos algum dia. Mas, contrariando toda a lógica, ela resolveu arriscar. Terminando seu café naquele dia de fevereiro, decidiu ir até a promotoria especial para crimes contra a liberdade de expressão e contar o que sabia. (A identidade dela e outros detalhes do crime não são mencionados porque o caso estava sob investigação no final do ano).
Assassinato é um crime comum, de modo que a maioria dos assassinatos de jornalistas fica nas mãos da polícia estadual, corrupta ou intimidada, com um histórico quase total de fracasso. Mas o promotor especial pode reivindicar a jurisdição se ocorrer infração de lei federal, como no caso de uso de fuzil automático para a prática do crime. A procuradoria especial pode pegar este caso porque as testemunhas estavam sendo ameaçadas.
O promotor especial, Gustavo Salas Chávez, cuida de 103 processos, quase todos envolvendo questões relativamente pequenas como detenções injustificadas. Mas Salas, que trabalha com apenas sete investigadores, será julgado não pelos processos menores, mas pela solução de qualquer um dos 11 assassinatos e desaparecimentos de jornalistas, que afirma estar sob sua jurisdição. Até agora, ele não processou ninguém. Salas assumiu no início de 2010, depois de gestões ineficazes de dois promotores especiais. Ao contrário deles, Salas é um chefe exigente, trabalhando com seus auxiliares até tarde da noite, inclusive nos finais de semana, e pressionando-os com demissões e exonerações, de acordo com relatos da equipe. Salas recusou-se a comentar o assunto, argumentando que sua chefe, a procuradora-geral Marisela Morales, se opôs a que ele falasse com o CPJ.
Como ficou claro, as autoridades federais haviam examinado brevemente o processo antes de a jornalista bater à porta da promotoria especial. A polícia estadual havia entregado um dossiê que descrevia a vítima como parte de um triângulo amoroso, provavelmente alvo de um marido ciumento. O arquivo não dava informações mais pertinentes. Amigos da vítima, por exemplo, disseram que ele tinha se envolvido em uma querela com um funcionário criticado por ele em seus artigos.
Quando a jornalista chegou ao órgão federal com a sua própria versão, os investigadores a questionaram durante horas, na presença de um representante do CPJ, como ela havia solicitado. Convencidos de que sua história era verossímil, os investigadores foram ao local do assassinato. O CPJ levou os investigadores a outro jornalista que tinha informações sobre o homicídio, e a outras testemunhas que possuíam subsídios sobre outros aspectos do caso. No final do ano, as autoridades federais disseram que estavam perto de encerrar o inquérito, apesar de não terem prendido ninguém.
Nesse meio tempo, a legislação para federalizar os crimes contra a liberdade de expressão prometida por Calderón, avançou lentamente no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou o projeto em novembro, mas ainda faltam muitas etapas. O fato de o projeto ser de emenda constitucional dificulta as chances de aprovação: emendas precisam não apenas de dois terços dos votos das duas câmaras do Congresso, mas também a maioria dos votos nos legislativos estaduais.
Embora a medida não tenha avançado muito no Congresso, os funcionários estaduais já haviam preparado sua oposição ao plano, que consideram outorgar demasiado poder ao governo federal, de acordo com o deputado Manuel Clouthier, do Partido de Ação Nacional, o PAN. Muitos jornalistas que trabalham nas regiões mais violentas do país dizem que os políticos estaduais têm outro forte motivo: quando jornalistas se sentem intimidados, não investigam políticos. Calderón sequer obteve a aprovação de um projeto de lei para aumentar as penas em casos de ataques à imprensa que já constituíam crime federal. Essa iniciativa foi aprovada na Câmara, mas não no Senado.
Por lei, Calderón só tem um mandato, que termina em 1º de dezembro de 2012, enquanto a agenda política está dominada pela campanha eleitoral que vai até julho, e há uma constante perda de poder para o líder em final de mandato.
Na cidade de Veracruz, repórteres e fotógrafos se reúnem em um café com vista para o Golfo do México. É um ritual matinal: intercâmbio de dicas e informações, insultos e brincadeiras. Mas esta manhã, em 7 de outubro de 2011, foi diferente. Na véspera, 36 corpos haviam sido encontrados em vários locais da cidade e subúrbios. Os assassinos assombravam Veracruz e, ao que parecia, a imprensa estava entre os alvos.
A sucessão de assassinatos começou em 20 de junho, deixando a imprensa e a população com medo do que iria acontecer e revoltadas com a polícia estadual, considerada incompetente ou cúmplice. Não que eles tivessem evidências para apoiar esta suspeita: na verdade, não tinham prova de nada, exceto pelo surgimento dos corpos. O chefe de redação do principal jornal, Notiver, a mulher e o filho foram encontrados mortos a tiros dentro de casa. Poucas semanas depois, em 26 de julho, foi encontrado o corpo torturado e decapitado de uma repórter policial do Notiver. Depois, em 21 de setembro, na hora de maior movimento da tarde, mais de 30 mortos foram afrontosamente desovados em um dos cruzamentos da rodovia mais movimentadas da região.
Nenhum dos jornalistas no café sabia dar mais informações, porque a polícia estadual, disseram, ou haviam se recusado a discutir os assassinatos ou forneciam informações desencontradas. Mais do que isso, não havia mais jornalistas da editoria policial na cidade. Eram eles que sabiam como chegar à verdade dos fatos, mas depois dos assassinatos do chefe de redação do Notiver, Miguel Angel López Velasco e da repórter Yolanda Ordaz de la Cruz, toda a equipe de repórteres policiais, cerca de 15, abandonou a cidade. Portanto, as “notícias” vinham através de comunicados da Marinha mexicana, que tem sede na cidade e estava participando das investigações. Embora nenhum dos jornalistas restantes acreditasse nesses comunicados, eles não investigavam a fundo devido ao perigo. A população também permaneceu desinformada, exceto pelos rumores que circulavam no Twitter e no Facebook.
Entender como as coisas chegaram a esse ponto requer um pouco de contextualização. A explicação mais coerente de como o crime organizado tomou conta de Veracruz começa em 2007, com a chegada do grupo criminoso los Zetas à cidade, aterrorizando ou corrompendo a polícia e funcionários locais para que pudessem agir. A imprensa era controlada da mesma forma, confirmaram repórteres, embora de forma anônima. “Quando éramos ameaçados, sabíamos que não havia sobrado autoridades honestas para nos proteger”, disse um deles. “Começamos a cobrir o noticiário como ordenavam los Zetas”.
Isso significava, afirmaram os jornalistas, que não haveria mais artigos sobre los Zetas. Portanto, nenhuma reportagem a respeito de como a cidade estava sendo dominada. Quando os jornalistas foram assassinados em 2011, presume-se que outros grupos criminosos que estavam chegando à cidade consideraram que os jornalistas eram próximos de los Zetas. Mas um fotógrafo reconheceu: “Na verdade, não fazemos ideia.” Era o mais razoável a fazer diante do assassinato impune de jornalistas: os acontecimentos que aterrorizavam a cidade, a história mais importante para seus moradores, não podia ser publicada.
No final de 2011, o número de jornalistas e pessoal da mídia que morreu ou desapareceu em todo o México somava 48 desde que Calderón assumiu o cargo. Pelo menos 13 das vítimas foram mortas em represália direta por seu trabalho, mostra a pesquisa do CPJ. Quase todos depois de tentar cobrir a vasta rede de crimes, tráfico de drogas e corrupção oficial. Não houve condenação em nenhum dos casos. Até o final do ano, apenas cinco países do mundo possuíam número mais elevado de assassinatos não solucionados de jornalistas. Somente oito jornalistas ameaçados receberam proteção do governo mexicano em 2011, cinco dos quais consideram o programa ineficaz. As cifras aumentam, bem como a quantidade de cadáveres.
O governo Calderón começou a agir em 2011, mas não obteve resultados, deixando os jornalistas sem esperança quanto a qualquer mudança próxima no clima de impunidade. O mecanismo de proteção foi mais uma promessa do que uma realidade, enquanto a promotoria especial claudicava, sem pessoal suficiente. As duas tentativas poderiam ter alterado a realidade, mas acabaram sendo promessas esquecidas. A ideia de tirar os crimes contra a imprensa da alçada estadual faz sentido, mas o presidente não conseguiu aprová-la no Congresso. Na prática, a possibilidade de Calderón efetuar qualquer mudança diminui a cada dia com a aproximação das eleições presidenciais. Os jornalistas terão que depositar suas esperanças no novo presidente.
Mike O’Connor, jornalista radicado no México, é o representante do CPJ no país. É coautor do relatório especial de 2010 do CPJ, Silêncio ou Morte na Imprensa Mexicana.